Carl Jung, criador da psicologia analítica nos presenteou com conceitos importantes, entre eles o do inconsciente com sua estrutura pessoal e coletiva, assim como sua linguagem simbólica.
Compreender a linguagem do inconsciente não é tarefa fácil, uma das formas de compreender essas mensagens se faz por meio da interpretação dos sonhos.
Von Franz (2002) aponta então:
“Observando um grande número de pessoas e estudando seus sonhos (calculava ter interpretado ao menos uns 80.000 sonhos), Jung descobriu não apenas que os sonhos dizem respeito, em grau variado, à vida de quem sonha, mas que também são parte de uma única e grande teia de fatores psicológicos.
Descobriu também que, no conjunto, parecem obedecer a uma determinada configuração ou esquema. A este esquema Jung chamou “o processo de individuação” dentro da psicologia analítica.
Ao estudar os sonhos e observar sua sequência ao longo de alguns anos, perceberemos que alguns temas emergem, desaparecem e depois retornam. Mas mesmo se repetindo, se observarmos atentamente, constataremos que o conteúdo sofre uma mudança, mesmo que pequena e lenta.
Observaremos também, que esse processo de mudança pode se acelerar se houver a colaboração da atitude consciente do sonhador, devido a uma interpretação correta e apropriada do sonho.
Carl Jung então percebeu, ao longo das análises dos sonhos de seus pacientes, que há uma ação reguladora direcional oculta, que gera um processo lento e imperceptível de crescimento psíquico, que denominou de processo de individuação.
Ao observar o quão efetivo é a participação consciente da pessoa nesse processo, nota-se então que, no processo de individuação a participação do ego é de fundamental importância dentro da psicologia analítica.
A individuação exige a participação do ego consciente, uma vez que o ego auxilia na integração dos produtos do inconsciente com a consciência, formando uma síntese dinâmica, por meio de um símbolo unificador.
Sobre essa importância do ego no processo de individuação, Carl Jung (2008) diz:
“Uma consideração importante sobre a consciência é que não pode haver elemento consciente que não tenha o ego como ponto de referencia.
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Assim, o que não se relacionar com o ego não atingirá a consciência.
A partir desse dado, podemos definir a consciência como a relação dos fatos psíquicos com o ego.”
A individuação então implica em um relacionamento ego – Self, onde nem um ou outro existem independentemente.
Carl Jung (2003) compara o ser humano e seu crescimento biológico e psíquico a uma árvore. Ela simboliza um desenvolvimento interior, independente da consciência e da vontade consciente. Ela representa a união dos opostos; suas raízes que estão embaixo (água, negrume, animal, serpente, etc.), se unem com o que está em cima (pássaros, luz, cabeça, etc.). A união dos opostos: consciente e inconsciente.
A árvore também representa esse desenvolvimento lento, pujante e involuntário e que cumpre um esquema bem definido.
Nosso crescimento biológico é assim, e também nosso processo de individuação. Ele acontece independente da nossa vontade e visa a união dos opostos.
O estágio inicial, anterior ao nascimento do ego, foi descrito por Neumann (xx), como a uroboros (serpente que engole a própria cauda). Essa imagem descreve o Self primordial, ou seja, o estado de mandala original de onde o ego individual emerge.
Esse é o estágio inicial do desenvolvimento psíquico, onde o ego se encontra ainda no estado urobórico, mergulhado no inconsciente coletivo. Aos poucos o ego vai se diferenciando dessa totalidade e tendendo a uma separação inicial, para posteriormente se relacionar com o Self novamente.
Sobre esse processo, dentro desse processo de psicologia analítica, Jung (1973) diz:
“Pode-se-ia dizer que todo o mundo, com sua confusão e miséria, está num processo de individuação. No entanto, as pessoas não o sabem, esta é a única diferença. A individuação não é de modo algum uma coisa rara ou um luxo de poucos, mas aqueles que sabem que passam pelo processo são considerados afortunados. Desde que suficientemente conscientes, eles tiram algum proveito de tal processo.”
Mas o que significa processo de individuação? Carl Jung (1991), diz que:
“A individuação, em geral, é o processo de formação e particularização do ser individual e, em especial, é o desenvolvimento do individuo psicológico como ser distinto do conjunto, da psicologia coletiva. É, portanto um processo de diferenciação que objetiva o desenvolvimento da personalidade individual.”
Cada estágio então, do processo de individuação, é marcado por dificuldades. Essa não é uma tarefa fácil, nem agradável.
Cada um de nós tem uma forma peculiar e única de se desenvolver. Esse foi um ponto de crítica a Jung, pois a individuação não apresenta material sistematizado, nem um scrpit a ser seguido. No entanto, é ai que reside a beleza do processo de individuação.
Então, na infância nos encontramos no estado urobórico citado acima.
Ao chegar à idade escolar a criança começa a fase de estruturação do seu ego e de adaptação ao mundo exterior. Esta fase em geral traz um bom número de choques e embates dolorosos. Ao mesmo tempo, algumas crianças nesta época começam a sentir-se muito diferentes das outras, e este sentimento de singularidade acarreta uma certa tristeza, que faz parte da solidão de muitos jovens (Von Franz, 2002).
Von Franz (2002), colabora com a psicologia analítica dizendo ainda:
“O verdadeiro processo de individuação — isto é, a harmonização do consciente com o nosso próprio centro interior (o núcleo psíquico) ou self — em geral começa infligindo uma lesão à personalidade, acompanha da do consequente sofrimento. Este choque inicial é uma espécie de ”apelo”, apesar de nem sempre ser reconhecido como tal . Ao contrário, o ego sente-se tolhido nas suas vontades ou desejos e geralmente projeta esta frustração sobre qualquer objeto exterior. Isto é, o ego passa a acusar Deus, ou a situação econômica, ou o chefe, ou o cônjuge como responsáveis por esta frustração.”
Por essa razão, a dificuldade inicial no processo de individuação – que se trata de um empreendimento individual – pode levar a uma rejeição ou indiferença dos outros. Além de gerar um sentimento de impotência diante da força do inconsciente.
Esse estágio inicial do processo de individuação, vemos nos contos de fada representado simbolicamente pelo rei que ficou doente ou envelheceu e precisa ser substituído. Há ainda o casal real estéril; ou o monstro que rouba mulheres, crianças, cavalos e tesouros de um reino; ou o demônio que impede o exército ou a armada de algum rei de seguir sua rota; ou a escuridão que cobre todas as terras, e ainda histórias sobre secas, inundações, geadas etc.
Algo não está em harmonia na consciência, algo se desgastou e precisa de renovação. O ego já não tem forca para seguir sozinho.
Nesse momento inicial começamos a nos despir das personas. Corremos sério riso de nos identificar com a persona, ou seja, de passar uma imagem de perfeição e pureza. O ego costuma se identificar como a persona idealizada, quando somos jovens. Nos imaginamos mais fortes, mais inteligentes do que realmente somos.
Para a retirada dessa identificação necessitamos de outra instância psíquica, que é a sombra.
A sombra na psicologia analítica nosso material psíquico inconsciente. Nela pode estar aquilo que consideramos errado em nós, mas também nossas potencialidades ainda não reconhecidas, como a nossa função inferior.
No processo de individuação todos nós precisamos olhar para nossos aspectos sombrios. Esses aspectos negativos em nós acabamos por projetar em outras pessoas.
O problema que podemos enfrentar nessa fase do processo de individuação é em parte enxergar e admitir a existência da sombra, o que já causa um sério incomodo em nossa identificação com a persona. Mas o grande problema ético surge quando se decide expressar a sombra conscientemente. Isso requer grande cuidado e reflexão, para que não se produza uma reação perturbadora (Von Franz, 1984). É nesse ponto do processo que nos perguntamos como podemos encaixar a sombra em nossa vida, sem nos identificarmos com ela e nos tornarmos destrutivos para nós mesmos e para os outros.
Também temos nesse processo o confronto com anima e animus e os problemas de relacionamentos. Podemos nesse processo sucumbir a eles.
Nos homens, a anima pode acarretar súbitas mudanças de humor e instabilidade emocional. Nas mulheres, o animus pode se manifestar em forma de opiniões rígidas e irracionais, prepotência e arrogância. Mas os conteúdos de anima e animus são o complemento de nossa percepção consciente de nós mesmos como masculinos e femininos, algo que é fortemente influenciado por valores culturais e papéis definidos pela sociedade. A dificuldade está em assimilar esses conteúdos sem sucumbir a eles em seu lado negativo.
Esse material todo: sombra, anima, animus, persona, são materiais coletivos, são arquétipos. Quando somos expostos a esses materiais do inconsciente, corremos alguns riscos, entre eles: a inflação do ego, onde o individuo reivindica para si as virtudes do inconsciente coletivo; ou a impotência do ego, a pessoa se sente sem controle e sucumbe a aspectos irracionais do inconsciente coletivo e impulsos negativos.
No processo de individuação também há o encontro com o Self, que Jung denomina como centro organizador da totalidade psíquica.
Nos contos de fadas o Self aparece como Velho Sábio e Velha Sábia, e assim também pode aparecer nos sonhos. Nos mitos são os deuses.
O perigo aqui é o da identificação com o Self, pois o individuo se torna aquele que sabe tudo, um verdadeiro guru, aquele que traz a verdade única. Essas pessoas tendem a acreditar que se tornaram divinos, santos e perfeitos, e assim perdem contato com sua humanidade, tendo neles também um lado bastante diabólico.
Ninguém é plenamente sábio, infalível. Mas essa identificação é um estágio quase que inevitável no processo de individuação. Para combater isso devemos sempre nos lembrar de nossa humanidade e permanecermos assentados na realidade.
Nos mitos essa identificação é denominada húbris, e é punida pelos deuses. Édipo, Orestes, Paris, Cassandra, Aracne, Prometeu, Tirésias, Heitor, Narciso, são exemplos na mitologia de punição pela húbris.
Devemos então nos lembrar de que a individuação não visa a perfeição, mas a totalidade. A realização do Self na vida humana e não a identificação com ele.
A alma humana são se conhece apenas no consultório, mas nas experiências de vida e, por isso, se faz necessário o outro nesse processo.
As exigências do Self vão nos mostrar nosso papel na sociedade, a nossa vocação, onde podemos exercer nossa individualidade para o bem estar pessoal e da sociedade.
Referências Bibliográficas:
ALT, C. B. Contos de Fadas e Mitos – Um trabalho com grupos, numa abordagem junguiana. São Paulo: Vetor, 2000
JUNG, C. G. Estudos Alquímicos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
____________ Tipos Psicológicos 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991.
____________ Fundamentos da Psicologia Analítica 14. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
____________ C.G .Jung letters, Vol I, London, Routledge & Kegan Paul, 1973.
JUNG, C., VON FRANZ, M. L., HENDERSON, J. L., JACOBI, J. & JAFFÉ, A. O homem e seus símbolos, 23 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
VON FRANZ, M. L. A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo: 2002.
________________ A individuação nos contos de fadas. 3 ed. Paulus: São Paulo: 1984.