Quíron para alguns, Sagitário para outros.
Não importa a forma simbólica pela qual esta figura se manifesta, ela revela uma história sobre dor e sacrifício, mas sobretudo de doação. Por conta disso, é comum que este mito seja relacionado com o arquétipo do curador- ferido que está presente na relação terapêutica entre terapeuta e analisando. Continue a leitura e descubra como essa correlação pode ser feita.
A origem de uma lenda
Você sabe o que Hércules, Aquiles, Jasão e Esculápio têm em comum? Eles tiveram o mesmo mestre: Quíron.
Seu nascimento foi controverso, já que seu pai, o Titã Cronos se transformou em cavalo para que sua traição com a ninfa das água Fílira não fosse descoberta. Assim nasceu o mais poderoso dos centauros.
Apenas com este pequeno parágrafos temos muitas coisas que pensar. Vamos passar com calma por cada uma delas para extrair as simbologias escondidas no mito:
O Titã Cronos
Quando o céu (Urano) e a terra (Gaia), se uniram, eles deram origem aos Titãs, entre eles Cronos, que era considerado a personificação do tempo. O tempo, aquele que faz a vida se movimentar e as coisas mudarem, Cronos fazia jus ao seu papel. Um dos mitos relata que ele jogou os testículos de seu pai Urano no mar, permitindo assim que o céu e a terra se separassem e assim a vida começou.
No entanto, seu destino não foi tão feliz.
Com sua irmã, Réia (personificação da fertilidade), ele dá origem a seus filhos, mas com receio de que eles tentassem tomar o poder, Cronos passa a devorá-los. No entanto, um deles cresce escondido em uma caverna com a ajuda da mãe: ninguém menos do que Zeus.
Zeus cresceu, fez com que Cronos “vomitasse” todos os seus irmãos e unido com eles, enfrentou uma guerra sangrenta contra os Titãs chamada de Titanomaquia. O tempo foi vencido, então os deuses se tornaram imortais e os Titãs condenados a vagarem pelo Tártaro. No entanto, antes de que isso acontecesse, ele teve um caso com a oceanide Fílira.
A ninfa Fílira
Considerada a deusa do perfurme e da escrita, ela teria ensinado a humanidade a fabricar papel.
No entanto, a maternidade não era um de seus atributos. Por ter se relacionado com Cronos quando ele estava em forma de um cavalo, ele nasceu com ambas as característica o que causou horror à mulher.
Este é um ponto que podemos nos atentar: a escolha da figura de um cavalo.
Estes animais eram considerados seres misteriosos que representavam a vida e a morte, o fogo e a água. Além dessa ambivalência, sua natureza selvagem pode ser relacionada com a impulsividade.
É por meio desta figura que o encontro entre o Titã e a Ninfa é representado: uma relação fugaz que tinha como objetivo suprir os desejos primitivos e todas as sensações que são despertadas em um amor proibido.
Centauro: entre o cavalo e o humano
Desta união incomum surge Quíron.
Se sua parte animalesca lhe conferia força e a rapidez, sua parte humana oferecia as artimanhas da inteligência e a delicadeza da alma humana.
Rejeitado por sua mãe, o centauro foi educado por Apolo (personificação do sol e da cura) e por Atena (representação da sabedoria e da justiça). Eles o ensinaram o saber sobretudo da medicina.
Com o passar dos anos, Quíron cresceu e se tornou conhecido por sua gentileza com os doentes e pelo seu dom em trazer conforto aos que sofriam com fortes dores.
Simbologia por trás do Quíron
Uma analogia que pode ser feita com a figura do centauro é que ele representas duas naturezas distintas: o animal e o humano. O primeiro representaria as forças primordiais, o que é natural, o inconsciente, os arquétipos. Já o segundo poderia ser o ego e a consciência.
Ora, se o cavalo é um ser animal, ele carrega em si as potencialidades do natural e se o homem é sapiens sapies, ele leva em si a potencialidade da racionalização e do saber. O equilíbrio entre essas duas forças deu origem ao Quíron, uma figura que não é nem homem nem um cavalo, mas está entre os dois.
Podemos relacionar esta ideia com um conceito ela elaborado por Jung, a individuação. Segundo ele, esta seria um processo no qual o ser humano se tornaria uma totalidade em si mesmo, se diferenciando dos demais. Quíron era assim pois estabelecia uma comunicação entre seus dois lados (assim como o eixo ego-self).
O legado de Quíron
Com sua fama de bom conselheiro e curador, não demorou muito para que o centauro fosse também reconhecidos por grandes heróis. Afinal de contas, toda jornada de herói precisa de um mestre que lhe ensine sua sabedoria. Alguns dos heróis que foram treinados e beneficiados de sua sabedoria foram Aquiles, Jasão e Hércules.
No entanto, Hércules após matar a Hidra de Lerna, feriu sem querer Quíron, seu amigo, com uma flecha envenenada com o sangue do monstro.
Uma imortalidade que advém das estrelas
A ferida deixada por Hércules trouxe muitas dores ao Quíron, já que ela não cicatrizava e nem parava de doer. Com isso, o centauro rogou aos deuses para que sua imortalidade originada de seu pai Cronos fosse retirada para que seu sofrimento pudesse cessar.
Quíron e Prometeu
A solução para isso está relacionada a outro mito grego: o de Prometeu.
Resumidamente, o que ocorrem em seu mito é que Prometeu (Titã que representava a premeditação e que ficou ao lado de Zeus na guerra contra os Titãs), havia roubado o fogo do Olimpo para entregá-lo para a humanidade. Como castigo a tal ato, Zeus o condenou a ficar acorrentado no alto de uma montanha, tendo o seu fígado devorado como uma águia. Por ser um Titã, e portanto imortal, o órgão se regenerava e o ciclo de dor se reiniciava. Para ter a sua liberdade de volta, Prometeu deveria ser substituído por outro ser imortal.
Quíron, já ferido, foi o escolhido para ser o substituto e por conta deste sacrifício, lhe foi concedida a mortalidade.
Diante disso e de sua postura gentil e benevolente durante a vida, os deuses o imortalizaram de outra forma: nas estrelas, através da constelação de Sagitário.
Quíron na astrologia
Ao olhar para o céu, lembre-se de Quíron.
Além da constelação conter o seu símbolo, recentemente, um posicionamento da astrologia foi batizado com o nome de Quíron. Ele representa a área da vida que está gerando dor e sofrimento e nos convida a olhar e refletir sobre elas.
Apesar de psicologia e astrologia serem áreas de conhecimento distintas, podemos utilizá-la como ampliação simbólica, da mesma forma que já fazemos com os mitos.
O paralelo entre o mito e o terapeuta
Quantas vezes nós, terapeutas, olhamos com cuidado e atenção para as feridas emocionais de nossos analisandos e deixamos de olhar para as nossas? Quantas vezes nos debruçamos pra compreender as dores dos outros, mas não nos dedicamos igualmente para as nossas dores?
Nós não curamos, mas olhamos com um olhar mais sensível e técnico para nossos analisandos, os auxiliamos a atravessarem o seu vale de dores e a ampliarem a sua consciência sobre si mesmo e de suas potencialidades.
O mito do Quíron é um convite, um convite para que nós, descendo do pedestal da imortalidade “da figura do psicólogo”, possamos reconhecer as nossas própria feridas internas. É um convite para que possamos perceber o nosso próprio sofrimento e complexos refletidos no atendimento por meio das frases e vivências compartilhadas por nossos analisandos.
Por isso, terapeuta, se algum dia você se esquecer de que ao tocar uma alma humana, deve ser apenas uma outra alma humana, olhe para a constelação de Sagitário e lembre-se de que os curadores feridos também devem buscar a sua cura.
2 comentários
Bom dia Instituto Freedom.
Uma bela entrada para o cardápio terapêutico de logo mais. QUÍRON – O CUIDADOR FERIDO ou em um provocativo trocadilho O FERIDO CUIDADOR.
Linda história! Muito simbólica.