“Então, é verdade que a alma dos que morrem estão no Hades e regressam a este mundo para renascerem dos mortos, devemos pensar que as almas existem no além. Elas não poderiam renascer se não existissem. Podemos concluir que as almas dos mortos subsistem.”
Fédon, Platão.
Após ficar oculto durante setenta anos, eis que em 2010 foi lançado o tão aguardado Livro Vermelho de Carl Gustav Jung.
Jung finalizou o Livro Vermelho em 1930 e optou por não o publicar por se tratar de um conteúdo extremamente pessoal e por conter um material que era de difícil alcance e entendimento da maioria das pessoas. Ele seria incompreendido. Na verdade, publicar o livro ou não, foi um questionamento constante durante toda a sua vida.
Após a sua morte, em 1961, a família de Jung preferiu manter o livro guardado, pois não sabiam se o material seria bem aceito e se essa era a vontade de Jung.
O livro Vermelho era alvo de curiosidade desde que Jung publicou Memórias, sonhos e reflexões.
Já de início, o livro relata o confronto de Jung com o “espírito das profundezas”, e como ele teve de abrir mão de sua mente cientifica para experienciar a atividade de sua psique, para que o inconsciente pudesse se realizar em sua vida.
Nesse contexto, Jung experiencia a solidão, o afastamento dos amigos e a desorientação atemporal. Essa vivência, viria definir posteriormente como imaginação ativa.
Jung narra sua descida aos infernos para encontrar sua alma, assim como Cristo e Nietzsche, em um processo de morte e renascimento.
Ele narra seu encontro com sua alma, Sofia, que o levou, posteriormente, a definir, em sua obra, o conceito de anima e animus.
Após o rompimento com Freud e o movimento psicanalítico em 1914, seguiu-se uma torrente de sonhos e visões que forneceram material para o trabalho de toda uma vida. Jung precisou mergulhar nesse material que jorrava de seu inconsciente visando a integração de seu conteúdo para que não sucumbisse a uma psicose.
Esse material foi escrito nos Livros Negros e então, compilados no Liber Novus.
Muitos dizem que o confronto com o inconsciente e o consequente Livro Vermelho foi um resultado da uma crise provocada pela ruptura com Freud e a psicanálise. Mas isso não é inteiramente verdade, pois Jung já tinha essas visões e sonhos desde sua infância. Na verdade, Jung se sente autorizado a entrar em contato com esse material, sentiu que era o momento propicio, e assim entra em contato com algo que já lhe pertencia.
Em Símbolos da Transformação (1986) ele relata uma necessidade imperiosa de entrar em contato com esse material e elaborar sua teoria. Para ele era uma urgência a esse empreendimento. Sentia uma explosão dos conteúdos anímicos que não encontravam lugar na estreiteza sufocante da filosofia de Freud.
Para a composição do Liber Novus, Jung recebeu influência de diversas obras e autores como Zaratustra, de Nietzsche, A divina comédia, de Dante, Fausto, de Goethe. Além de Kant, Strauss e Schopenhauer.
O Livro é dividido em duas partes. Na primeira parte – chamada Liber Primus – Jung confessa ter perdido a sua alma. Ele buscou compreender a alma em seus estudos psiquiátricos e em seu devotamento na compreensão das doenças mentais, por meio de uma mente cientifica.
No Liber Primus ele diz: “eu falava e pensava muita coisa da alma, sabia muitas palavras eruditas sobre ela, eu a analisei e fiz dela um objeto de ciência”.
Ele diz que se afastou de sua verdade mais profunda: “cheio de vaidade humana e cego pelo ousado espírito dessa época, procurei por muito tempo manter afastado de mim aquele outro espírito”.
Para Jung o “espírito da profundeza” é aquele que “possui, desde sempre e pelo futuro afora, maior poder que o espírito dessa época que muda com as gerações”. Assim ele entra em contato com uma camada profunda da psique humana, imutável, pré-existente, que ele posteriormente viria chamar de inconsciente coletivo.
O Livro Vermelho traz também o renascimento do divino interior, da transcendência e da busca do significado. Principalmente no segundo livro onde Jung resgata o universo cristão.
Alguns textos do Livro tem um aspecto revelatório, escritos através de uma súbita revelação.
Mas esse processo, Jung associa a uma descida ao inferno.
O reencontro com sua alma (Anima) e o posterior contato com a divindade que morre e renasce (e que depois ele chama de Si-mesmo), é comparável a uma crucificação.
Em Mysterium Coniuctionis (1997), Jung compara o encontro com a alma (que ele chama de anima no homem e animus na mulher), é comparável a uma crucificação. “(…) E uma imagem daquele que ama alguém e seu coração é ferido de amor. Assim Cristo foi ferido na Cruz pelo amor à Igreja. ”
Jung sofreu esse processo de crucificação e desmembramento, causado pela união dos opostos, para que o Self se manifestasse em sua vida.
E assim ele resgata a Mitologia de forma viva e encontra o seu mito pessoal.
Cristo, Dioniso são o protótipo dessa descida simbólica aos infernos, morte e renascimento. Psiquê é o equivalente feminino – e não menos doloroso.
Para finalizar, Jung deixa claro que não deixou o Livro Vermelho como um modelo de individuação e que ninguém deve seguir o que Jung viveu, mas buscar a sua maneira individual e única de descer aos seus infernos e reencontrar sua alma perdida.
Perdemos nossa alma em detrimento da vida moderna e do espirito da nossa época. Ou seja, dos valores dominantes de nossa sociedade.
No limite dessa perda precisamos recuar, entrar na solidão e em contato com um eu mais profundo, transcendente, além do ego.
Essa solidão e reencontro com a alma é um sacrifício do ego, do modo encarar a vida e uma entrega do controle egóico para algo maior.
Uma descida aos infernos, um abandonar de formas seguras de se viver. Algo que beira a loucura. É a solidão consciente, mesmo em meio a vida diária e em meio aos outros.
Nesse sacrifício a criança divina nascerá, como símbolo do Self, e da realização máxima.
Referências Bibliográficas:
JUNG, C.G. Mysterium Coniuctionis. ed.Vozes. Petrópolis: 1997.
JUNG, C.G. Símbolos da transformação. ed.Vozes. Petrópolis: 1986.
Texto: Hellen Reis Mourão para o Instituto Freedom