A autora do Diário em análise, uma menina de seus 14 anos, denota ser, em geral, e de início, intolerante, sem autocrítica, dedicada a discussões acaloradas com membros de sua própria família e outros, todos refugiados dos nazistas, na Holanda, durante a II Guerra Mundial. O Diário foi escrito no período de 1942 a 1944, e descreve toda a tensão que a família Frank sofreu durante a guerra. Ao fim de dois anos de silêncio e medo aterrorizante, eles foram descobertos e deportados para campos de concentração. Anne morre em um destes.
“O Diário de Anne Frank” (ODAF), além de ser precioso documento histórico, é também uma ótima expressão do desenvolvimento psicológico de uma adolescente, de sua fase infantil para uma vida bem mais madura. A autora exprime sua evolução em suas confissões escritas, nos parcos relatos de sonhos e visões, e nas suas fantasias. É preciso atentar ao fato de que essa dinâmica psicológica progressiva até a Anne adulta ocorre sob fortes pressões emocionais, que inclui até o risco de morte, o que abrevia muito a extensão dessa transformação. A intenção aqui é fornecer uma ideia psicológica geral e sintética do contexto psíquico apresentado por Anne.
Em seu primeiro relato, a autora dirige-se ao próprio Diário: “Espero poder contar tudo a você, como nunca pude contar a ninguém, e espero que você seja uma grande fonte de conforto e ajuda.” (p. 18). Esse é o tom que percorre toda a obra do início ao fim. O Diário é personificado na forma de uma amiga imaginária, nomeada “Kitty”, com a qual Anne se defronta continuamente. Ela é um esforço de imaginação no sentido de personificar a imagem ideal de amiga há muito esperada. Kitty serve de espelho a Anne, em uma atitude totalmente receptiva, de registro do que quer que se encontre passando em sua alma. A ansiedade é intensa: “Tenho vontade de escrever e uma necessidade ainda maior de desabafar tudo o que está preso em meu peito. […] O papel tem mais paciência do que as pessoas.” (p. 18-19). A principal motivação em ter um diário é a liberdade de expressão, o que não ocorreria com um amigo físico. Não é que ela seja solitária, pelo contrário… Mas ela não considera a multidão de admiradores, parentes e outros relacionamentos como “verdadeiros amigos”. A estes não consegue se obrigar a “falar nada que não sejam bobagens do cotidiano” (p. 19), uma vez que não confia neles. No Diário não quer escrever “fatos banais do jeito que a maioria faz”, pois quer que ele seja sua amiga.
De certo modo, é como se Anne escrevesse cartas ao seu inconsciente, personificado por Kitty. Pode-se considerar essa maneira de interação fantasiosa como uma forma de imaginação ativa, ainda que não de todo completa. A imaginação ativa é uma técnica utilizada por Jung para se relacionar com o inconsciente. Ele mesmo relata em suas memórias que escrevia cartas a sua alma (sua anima). Porém, nem toda prática de registro em diário pode ser considerada imaginação ativa. O principal ponto a considerar nesse sentido em ODAF é que a autora usava de sentimento para lidar com sua figura imaginativa, de modo a considerá-la uma pessoa real, apesar de pertencer ao mundo da fantasia. Ter a convicção de que o conteúdo da fantasia é uma realidade, a despeito de não existir fisicamente, é um dos mais importantes critérios a serem atendidos para se executar uma verdadeira imaginação ativa. E a amiga imaginária de Anne é tão real que esta interage e relata intimidades que não ousaria confessar a mais ninguém. Desse modo, a autora se divide em Anne e Kitty.
Como a simbologia dos sonhos e das fantasias possui o mesmo efeito e sentido, independente de como ocorre, esse início do Diário possui um potencial mais positivo do que uma ocorrência equivalente em sonho, como descrito na citação. Anne se divide em duas de maneira consciente e tranquila, sem base em qualquer patologia mental, até onde se sabe. Portanto, essa fantasia com o Diário aponta para uma consciência maior, como se verá.
Esta dicotomia entre a realidade interna e externa, entre o eu e o eu duplo expressa, no entanto, simultaneamente, a possibilidade de o sonhador alcançar, apesar de todo perigo, uma consciência mais elevada. Novalis diz: “Ninguém conhece a si próprio enquanto for apenas ele mesmo sem ser ao mesmo tempo um outro”. (ANIELA JAFFÉ, em JUNG, 2011, p. 293)
Isto é, precisamos de um outro para nos conhecer, para nos refletir, nos espelhar. Esse outro pode ser nosso próprio inconsciente, como explicado no texto “Imaginação ativa ou terapia com o Sr. Inconsciente“. Isso ocorre porque, para observar o nosso próprio comportamento interno ou externo, precisamos nos dividir entre observador e observado.
Depois que Anne e sua família foram para o esconderijo passaram por muito sofrimento: ficaram fechados por mais de dois anos em um anexo de escritório; dividiram alimento, na maior parte do tempo precário, com mais quatro pessoas; não podiam ao menos abrir as janelas e contemplar livremente a natureza; ouviam e contemplavam evidências de bombardeios e tiroteios próximos; tendo seu alojamento arrombado por ladrões ou visitado por pessoas estranhas, achando que eram policiais da SS; obrigaram-se a suportar o mau cheiro dos próprios dejetos, a sujeira e o silêncio autoimposto para não chamar a atenção; etc.
O sofrimento é o caminho inevitável que deve ser trilhado para se chegar à consciência, o preço inevitável da transformação que buscamos. Não há como escapar-lhe; nós que tentamos fugir dele, jamais conseguiremos, e nossa infelicidade é dupla, pois além de pagar o preço, não alcançamos a transformação. Há uma lei terrível e imutável em ação: só há transformação quando aceitamos nosso sofrimento de maneira consciente e voluntária […]. (JOHNSON, 1997, p. 209-210)
Ora, o sofrimento de todos os refugiados no anexo é intenso e terrível. Anne não tinha como escapar da aceitação do seu sofrimento psíquico, ainda mais com o uso constante do Diário. Aceitação no sentido do diálogo, de estar consciente dele, de fazer algo de concreto com ele. Aceitação não é resignação ou passividade frente ao inevitável. É acolhimento, respeito e consideração atenciosa para com o sentimento.
O fator sofrimento deve ser muito considerado no caso de Anne Frank e seu desenvolvimento. Psicologicamente, sofrer é imprescindível, pois toda solução real de conflito só é encontrada por meio do sofrimento intenso. Ele indica até que ponto somos insuportáveis a nós mesmos. Devemos nos entender com nossos inimigos interiores e exteriores. Fazer isso é sintetizar a nossa própria totalidade, que é o objetivo da vida. Mas para isso precisamos suportar o sofrimento, que deve ser “esquentado” até que a tensão fique insuportável e os elementos opostos envolvidos no conflito se fundam dentro de nós nós. A felicidade e o sofrimento encontram-se tão intimamente ligados que a felicidade vira sofrimento e o sofrimento mais intenso pode provocar uma espécie de sentimento sobre-humano de felicidade. Eles são um par de opostos imprescindível à vida (JUNG, 1999, p. 246 e 258). E é exatamente isso que acontece com a adolescente, como demonstrado na seguinte passagem do Diário:
Eu costumo me sentir mal, mas nunca me desespero. Vejo nossa vida no esconderijo como uma aventura interessante, cheia de perigo e romance, e cada privação. Decidi levar uma vida diferente da de outras garotas, e não me tornar mais tarde uma dona de casa comum. O que estou vivenciando aqui é um bom início para uma vida interessante, e este é o motivo – o único – para eu rir do lado engraçado dos momentos perigosos. Sou jovem e tenho muitas qualidades ocultas; sou jovem, forte e vivo uma grande aventura; estou no meio dela e não posso passar o dia inteiro reclamando porque é impossível me divertir! Sou abençoada com tantas coisas: felicidade, alegria e força. A cada dia me sinto amadurecendo, sinto a libertação se aproximar, sinto a beleza da natureza e a bondade das pessoas ao redor. A cada dia penso em como essa aventura é fascinante e divertida! Com tudo isso, por que deveria me desesperar? (FRANK, 2016, p. 311-312)
Curioso é o fato de a autora confessar isso em seu Diário íntimo Isso denota que sua intenção não era agradar ou convencer ninguém. Verdadeiramente, ela sofria, mas conseguia encontrar motivação e sentido para viver, para se entusiasmar, para se sentir feliz.
Até certo ponto do Diário, percebia-se que a sexualidade de Anne ainda não estava definida até a ida para o esconderijo. Conta ela de uma vez que foi dormir na casa de uma amiga e sentiu curiosidade sobre seu corpo. Perguntou a ela se poderiam tocar os seios uma da outra, como prova de amizade, o que recusou. No entanto, teve um desejo terrível de beijá-la e a beijou. Descreve como, ao ver uma mulher nua em um livro, entrou em êxtase. “Às vezes acho que elas são tão maravilhosas que tenho de lutar para conter as lágrimas.” E lamenta não ter uma amiga naquele momento. Por essa mesma época ela também ficara menstruada (p. 184).
Na puberdade as mudanças corporais acentuam a diferenciação do eu atual em relação ao infantil e, talvez por isso, o adolescente frequentemente impõe-se aos demais desmedidamente. Nesse período ocorre o processo de “nascimento psíquico” e a diferenciação dos pais. O sujeito interioriza as limitações exteriores, impostas pelos pais e pela sociedade, e, uma vez tornados subjetivos, estes se opõem aos impulsos existentes (JUNG, 1991a, §756-757). Isso ocorre de maneira evidente com Anne. A autora expressa no seu diário sua insatisfação com os pais, principalmente a mãe.
[…] mamãe, com todos os seus defeitos, é mais difícil de ser enfrentada. Não sei como devo agir. Não consigo fazer com que ela veja sua falta de atenção, seu sarcasmo e sua dureza de coração, mas não consigo assumir a culpa por tudo. Sou o oposto de mamãe; por isso, nós nos desentendemos, claro. Não quero julgá-la; não tenho esse direito. Simplesmente estou olhando-a como mãe. Ela não é uma mãe para mim – eu tenho de ser minha própria mãe. […] Às vezes acho que Deus está querendo me testar, agora e no futuro. Vou ter que me tornar uma boa pessoa por conta própria, sem ninguém para servir de modelo ou me aconselhar, mas no fim isso vai me tornar mais forte (p. 162-163). (negrito do autor do blog)
O Eu não consegue se formar com uma concordância perpétua. Com o desenvolvimento pode dizer: “Não, eu não gosto disso, gosto é daquilo” ou “Não, eu não sou assim, sou assado; eu sou bom, não sou mau”. E ao fazer todas essas discriminações, ele cria a sombra, o recipiente para o que não é (EDINGER, 2004, p. 24). Na adolescência, ao lado dos conteúdos do eu surge uma segunda série, um novo complexo com papel e função semelhantes aos do eu, o qual, em certos casos, pode assumir o comando no lugar do primeiro. Essa “segunda série” seriam as associações em torno da personalidade futura da criança. Ora, isso é divisão interior, um problema para o indivíduo. Por isso a adolescência é chamada de “anos difíceis” (JUNG, 1991a, §756-757). Essa “segunda série” possui papéis “semelhantes ao do eu”. É como se o adolescente tivesse duas identidades internas diferentes, e que qualquer uma delas pode assumir a direção da vida consciente, dependendo da situação. Uma intensa ambiguidade que marca a separação do que faz e não faz parte do Eu (consciência e inconsciente), da identidade em formação (LIMA FILHO, 2002, p. 32). Esse processo fica mais perceptível no caso de Anne se analisarmos suas visões, sonhos e fantasias.
Pouco antes de ela relatar o sonho que é como uma espécie de ponto de mutação de sua personalidade, ela descreve uma visão que teve com uma de suas melhores amigas, Hanneli, com quem costumava ir à escola. Não pensava nela pelo menos há um ano. Segundo Anne, Hanneli era meio estranha, expansiva em casa e reservada com outras pessoas, mas dizia tudo o que pensava, e passou a admirá-la bastante (p. 16). Uma noite, quando estava caindo no sono, Hanneli de repente apareceu diante dela, desamparada, com o rosto pálido e os olhos desesperados. “Eu a vi vestida de trapos, o rosto magro e desgastado. Ela me olhou com uma tristeza e com uma reprovação tão grandes em seus olhos enormes, que consegui ler a mensagem neles: ‘Ah, Anne, por que me abandonou? Me ajude, me ajude, me salve desse inferno!’” (p. 171). Porém, a autora confessa que só podia orar por ela, aquela que fora uma dedicada amiga. Provavelmente, durante a fuga da família, deve ter parecido que Anne estava tentando afastá-la, e aí ela deve ter se sentido mal. Anne sentia culpa por ter sido escolhida para viver enquanto a amiga provavelmente iria morrer.
Um mês depois Hanneli apareceu de novo, juntamente com a avó materna falecida. Esta teve uma doença terminal, mas a guardou em segredo até morrer. Anne a descreve como doce, gentil e leal, que se interessava por tudo o que dizia respeito à sua família. Nunca a decepcionou. Sempre defendeu a neta, mesmo se se comportasse mal. Neste ponto a autora imagina como ela deve ter se sentido solitária, apesar da presença dos familiares (p. 178s).
Os dois eventos acima, com a amiga e a avó, marcam a manifestação do Si-mesmo de Anne, o seu nº 2, a personalidade que vai florescer e se expressar mais totalmente até a véspera de sua prisão. As duas figuras de alguma forma sintetizam o que a adolescente iria se tornar mais tarde, isto é, a segunda série de associações da personalidade futura. Apesar de a adolescente afirmar que o sonho já citado marca sua mudança de personalidade, na verdade esta mudança vem se preparando há mais tempo, o que fica evidente nos sonhos/visões expostos. Essa fase é típica do processo de adolescência. As duas figuras parecem se complementar: a amiga, um aspecto mais sombrio, expressa quem Anne irá se tornar – a meta inconsciente do Si-mesmo; a avó parece ser uma espécie de guia, de segurança, para que o percurso da adolescente em direção ao fim a que se destina (Hanneli) seja garantido e o mais confortável possível. Parece oferecer o suporte de autoconfiança e autoestima necessário ao eu da neta. As duas figuras aparecem com um poder de atração à atenção de Anne quase irresistível. Esse “poder” deriva, antes de tudo, de as figuras possuírem um aspecto espiritual, do outro mundo. Pode-se dizer que a figura de Hanneli, associada a vários sentimentos opostos na adolescente, chega a assombrar a amiga. Por esses motivos, essas imagens podem ser apreciadas como personalidades mana. A passagem que segue acrescenta elementos muito esclarecedores aos sonhos aludidos e, por isso, é reproduzida quase por inteiro.
Mana é uma palavra derivada da antropologia […]; é pertinente ao extraordinário e irresistível poder sobrenatural que emana de certos indivíduos, objetos, ações e eventos, como também de habitantes do mundo do espírito. Seu equivalente moderno é “carisma”. Mana sugere a presença de uma força avassaladora, uma fonte primeva de crescimento ou cura mágica que equivale a um conceito primitivo de energia psíquica. Mana pode atrair ou repelir, descarregar destruição ou curar, confrontando o ego com uma força supra-ordenada. […] É um poder quase divino que se prende ao mágico, mediador, padre, médico, trapaceiro, santo ou tolo sagrado – a qualquer um que participa do mundo do espírito o suficiente para conduzir ou irradiar sua energia. […] As personalidades mana aparecem sempre que o ego conscientemente confronta-se com o Self. Vê-las como meras imagos de pai ou mãe [a avó, por exemplo – acréscimo meu] é reduzi-las a um “não mais que” ou “nada senão”, de acordo com Jung. A personalidade mana, como uma imagem ideal e incorruptível, é essencial para o processo de iniciação após o qual se obtém um renovado senso de individualidade. O perigo inerente a períodos de transição é que o indivíduo, contudo, se identifique com as figuras mana, e exista uma conseqüente inflação. (SAMUELS, 2003, “personalidade mana”).
Anne, como todo adolescente, passa por um processo de transição, que expressa todo um simbolismo iniciático. Apesar de o homem moderno não valorizar mais os ritos de passagem, isso não quer dizer que não sejam requeridos pela psique, a qual, se não encontra meios exteriores facilitadores para demarcar os passos dessa transformação, recorre então aos sonhos. E estes, em geral, são depreciados como imagens aleatórias sem sentido produzidas pelo cérebro. A moça parece se identificar com Hanneli, como se deduz em várias passagens, mas ao final percebe-se claramente como seu eu se destaca do drama interno, observando e apreciando os dois principais aspectos de sua personalidade, em conflito para assumir a sua consciência. Isso ficará mais claro ao final.
A situação psíquica do adolescente é complexa e dúbia. Como criança, seu ego é praticamente estabilizado, pois está identificado com os pais. Aos poucos cria-se outra série psíquica que será reforçada pela puberdade, por meio das mudanças corporais, como já visto. Com isso, ela tende progressivamente a perder a identificação para com o que os pais representam. Ao mesmo tempo, o ego começa a se destacar do Si-mesmo. Nesse momento, não se pode definir claramente o que é sombra (o não-eu): serão as identificações passadas – a primeira série psíquica, ou a outra série que aponta para o futuro, para quem ela será? Nessa situação incerta da adolescência, o que é sombra ou eu dependerá do momento ou da situação. Essa determinação tende a se concretizar apenas enquanto ele se torna adulto e toma as próprias decisões.
As mudanças corporais revigoram essa situação. É um processo em que diversos elementos se reforçam. Ao final dessa fase o adolescente poderá se reafirmar na identidade assumida, e a projeção pode ter um grande papel. Isso porque perceber a sombra nos outros e não em si estimula um contínuo esforço moral na formação e definição do eu e da sombra da criança. Projetar a própria sombra sobre os outros ajuda a obter um retorno positivo das pessoas próximas (ZWEIG e ABRAMS, 1994, p. 70). Supõe-se, portanto, que o Eu adolescente, em atividade de definir sua própria identidade, não se encontra firme em sua autonomia, já que está em processo de transformação. Vejamos como a autora do Diário descreve uma dessas manifestações corporais.
Pouco depois do aparecimento da avó e de Hanneli, Anne conta que já ficara menstruada três vezes. “Tenho a sensação de que, apesar de toda a dor, do desconforto e da sujeira, sou dona de um segredo. Assim, mesmo sendo uma coisa chata, de certo modo estou sempre ansiosa pela época em que vou sentir esse segredo outra vez dentro de mim.” Parece que a adolescente percebe sua menstruação como um mistério pessoal, próprio, todo seu, que não pode e não deve ser divulgado a todos e, por isso mesmo, a demarca psicologicamente em relação aos demais, no sentido de torná-la mais autônoma. Deste modo, a menstruação serve de apoio à definição do eu, da identidade da autora, assim como o conteúdo do seu Diário.
Para Jung (1987, p. 295-297) a melhor maneira de alguém proteger a própria identidade, de não confundi-la com os outros, é a posse de um segredo que queira ou deva guardar. Isso ocorre também com o início de qualquer sociedade: mesmo quando não há um segredo, inventam-se ou arranjam-se segredos conhecidos ou compreendidos somente pelos iniciados. A necessidade de cercar-se de mistério é de importância vital no estágio primitivo, já que o segredo compartilhado é o “cimento” da coesão do grupo. No indivíduo, o segredo em relação aos outros representa uma compensação fortalecedora da coesão psíquica da identidade, a qual submerge e se dispersa, com recaídas sucessivas na identificação com as outras pessoas. A busca da conscientização das próprias particularidades é a meta. “Só um segredo que não se pode trair, isto é, um segredo que nos inspira medo ou que não poderíamos formular conceitualmente (e que, por isso, pertence aparentemente à categoria das ‘loucuras’), pode impedir a regressão inevitável ao coletivo.” A necessidade de um segredo muitas vezes é tão grande que provoca o aparecimento de ideias e ações de cuja responsabilidade é quase impossível se suportar. Não é meramente um capricho ou vaidade, mas uma cruel necessidade, inexplicável para a própria pessoa, que é como um destino invencível que mostra a existência de elementos estranhos em seu íntimo, muito mais poderosos, dos quais ela se achava senhora.
A menstruação em segredo também é interessante do ponto de vista iniciatório. As sociedades antigas que aplicavam ritos de passagem com a primeira menstruação afastavam a jovem do seu mundo familiar. Ela era isolada e separada da comunidade, em uma cabana especial na selva ou num canto escuro da habitação. Trazia um vestido especial ou uma cor específica reservada a ela. Tinha que se manter em certa posição muito incômoda e evitar o sol ou ser tocada por qualquer pessoa (ELIADE, 1992, p. 93). A Bíblia traz diversas prescrições rituais de purificação, inclusive referente à menstruação:
19 Quando uma mulher tiver um fluxo de sangue e que seja fluxo de sangue do seu corpo, permanecerá durante sete dias na impureza das suas regras. Quem a tocar ficará impuro até à tarde. 20 Toda cama sobre a qual se deitar com o seu fluxo ficará impura; todo móvel sobre o qual se assentar ficará impuro. 21 Todo aquele que tocar o leito dela deverá lavar suas vestes, banhar-se em água e ficará impuro até à tarde. (Levídico, 12)
De certo modo, ao entender os fluxos corporais humanos, aí incluído o esperma, como impurezas espirituais, os ensinamentos hebreus estimulavam o isolamento das pessoas das quais derivavam esses fluidos sexuais até que houvesse seu estancamento ou passasse certo período de tempo. As sociedades antigas, referidas por Eliade (1992) anteriormente, restringiam o isolamento à primeira menstruação. Percebe-se como esses fluxos sexuais são particularmente tabu. Todo cuidado é pouco no contato com eles.
Ao adotar o segredo para esse assunto, Anne recorria ao instintivamente ao isolamento ritual do mundo familiar. Outros elementos ela já vivenciava devido à condição de refugiada: o esconderijo do anexo e a evitação do contato com o sol. Assim, o ambiente colaborou e, muito provavelmente de maneira instintiva, ela recorreu ao segredo como forma de segregação.
Mas suas mudanças se estendem também ao relacionamento com outras pessoas. Sua atração afetiva por outros homens se acentua. Anteriormente, por exemplo, Anne não admirava o filho de 17 anos dos Van Daan, família que convivia escondida com a sua, em quase nenhum aspecto. Ela achava Peter, “sua alteza”, um rapaz hipersensível, preguiçoso, que mal demonstra que está presente e hipocondríaco. Em outro momento, a dupla se fantasia e faz uma apresentação cômica, divertindo os refugiados. Posteriormente, ela se deita em sua cama e o expulsa de lá, deixando-o furioso, achando que ele poderia ter sido mais atencioso, já que dera uma maçã a ele.
Então, devido a uma necessidade tremenda, a adolescente decide conversar com Peter, e começa a frequentar seu quarto, dando sugestões para resolver suas palavras cruzadas. “Tive um sentimento maravilhoso quando olhei em seus olhos azul-escuros e vi como ele ficara retraído com minha visita inesperada. Dava para ler seus pensamentos mais íntimos, e vi em seu rosto um ar de desamparo e insegurança quanto ao modo de se comportar, e, ao mesmo tempo, tive um vislumbre de consciência da sua masculinidade. […] Naquela noite, deitei-me na cama e chorei até me acabar, ao mesmo tempo em que procurava ter certeza de que ninguém me ouvia. A ideia de precisar pedir favores a Peter era simplesmente revoltante. […] Não pense que estou apaixonada por Peter, porque não estou. Se os Van Daan tivessem uma filha, e não um filho, eu tentaria ficar amiga dela.” (p. 185-186). Bem, se Anne não estava apaixonada, com certeza tinha em Peter um refúgio de sua solidão. Certamente projetava nele uma necessidade interna antes esquecida…
Neste ponto Anne tem um sonho e os textos do Diário mudam psicologicamente. Para fins de estudo psicológico, o Diário pode ser dividido em duas partes: antes e depois deste sonho que ocorre com Peter Schiff, a quem chamava de “Petel”. Este a namorou por uns três meses, até que ele mesmo parou com os encontros. Mas a lembrança do amado se fixou duradouramente. Segue o sonho:
“Hoje de manhã acordei logo antes das sete, e imediatamente me lembrei do sonho que tive. Estava sentada numa cadeira, e diante de mim estava Peter… Peter Schiff. Estávamos olhando um livro de desenhos de Mary Bos. O sonho foi tão nítido que até me lembro de alguns desenhos. Mas não foi só isso — o sonho continuou. Os olhos de Peter subitamente encontraram os meus, e fiquei olhando durante muito tempo aqueles olhos castanhos aveludados. Então ele disse em voz baixa: — Se eu soubesse, teria procurado você há muito tempo. — Virei-me bruscamente, esmagada pela emoção. E aí senti um rosto macio, cálido e suave contra o meu, e foi tão bom, tão bom…” (p. 186).
Ora, a adolescente se aproxima de Peter, admira certos aspectos de sua personalidade, inclusive o relacionado à sua masculinidade, e então nega estar apaixonada; na sequência, tem um sonho com o antigo namorado, que, coincidentemente, também se chama Peter… O que Petel diz no sonho – “Se eu soubesse, teria procurado você há muito tempo”, poderia se encaixar perfeitamente na recente relação com Peter. Os aspectos que ela descreve no amigo: o ar de desamparo e a insegurança, podem ser percebidos nela mesma. A tensão de deixar transparecer que se sente atraída por ele perante qualquer pessoa, principalmente Peter, é extrema. Estaria se prevenindo de sentir a dor do desprezo anterior de Petel? E então, de repente, este aparece no sonho como que se desculpando, dizendo que não sabia, senão a teria procurado bem antes… Como Anne não via Petel há muito tempo, é muito mais provável que sua imagem represente conteúdos subjetivos de Anne; como Jung (1999, §510) afirma, quando a imagem de uma pessoa próxima a nós, de nossa relação cotidiana, aparece em sonhos, a probabilidade maior é de que o sonho se refira à relação do sonhador com a pessoa em questão; o contrário ocorre se o último contato com a referida pessoa foi há mais tempo. Assim, a imagem de Petel parece se referir menos ao adolescente do que a certos aspectos de Anne. Nas entrelinhas, é como se dissesse: “Lembra-se de mim? Do nosso romance? Você tem medo de se decepcionar de novo, mas se Peter souber do seu amor, ele vai te procurar”. Em uma analogia, é como se o deus Eros (Cupido) aparecesse e deixasse uma mensagem instigando a aventura no campo amoroso. E o resultado desse mergulho no desconhecido acaba por mudar Anne profundamente, fazendo com que se deixe revelar aspectos mais genuínos de si aos pais e aos mais próximos…
Anne não sabe o que ocorreu, mas ficou certa que mudou seu comportamento e atitudes após o sonho. Então, quase duas semanas depois, o conteúdo do sonho se repetiu, mas de maneira menos intensa e agradável. Dia após dia ela começa a se preocupar e a questionar aspectos que antes não passavam por sua cabeça. Por que as pessoas procuram esconder seus verdadeiros sentimentos? Por que ela se comportava de modo diferente do que deveria quando na companhia dos outros? Apesar de vislumbrar algum motivo para isso, percebe que é horrível descobrir que não pode confiar em ninguém, nem nos mais próximos. Sente que amadureceu desde o sonho citado. Tornou-se uma pessoa independente. “Você pode me dizer por que as pessoas se esforçam tanto para esconder seu eu verdadeiro?” Até sua atitude anterior para com os Van Daan, com os quais era intensamente crítica, mudara: admitiu que usava de puro preconceito. A autora do Diário queria “ver as coisas com olhos novos” e formar sua opinião, não somente copiar os pais. (p. 193-195).
A vida da adolescente antes do esconderijo era muito diferente, a ponto de parecer mesmo irreal diante de si mesma. Sua vida era “celestial”, completamente diferente da menina ajuizada dentro daquelas paredes. Ela tinha cinco admiradores em cada esquina, umas vinte amigas, era a preferida da maioria dos professores, mimada pelos pais, portava sacolas recheadas de doces e tinha dinheiro para gastar. Não poderia pedir mais nada. E isso não ocorria só porque era atraente. Ela divertia os professores com suas respostas espertas, observações engraçadas, seu rosto sorridente e pensamento crítico. Se descrevia como uma tremenda namoradeira, charmosa e animada. Mas então caíra na realidade: acostumou-se a viver sem admiração. Aquela Anne era o centro das atenções, divertida e agradável, mas superficial. No entanto, apesar de não ter se esquecido do riso e das respostas afiadas, e conseguir paquerar e ser divertida, se ainda quisesse, gostaria apenas de ter essa vida descuidada apenas por uma tarde, no máximo uma semana. Então ficaria exausta e agradeceria se alguém se aproximasse e conversasse sobre algo importante. “Quero amigos e não admiradores. Pessoas que me respeitem pelo caráter e pelo que faço, não pelo sorriso encantador. O círculo ao meu redor seria bem menor, mas não importa, desde que fosse composto por gente sincera.” (p. 234-235). Isso é muito intrigante. O que a confidente deixa claro é ter havido uma mudança muito profunda: a de uma atitude extrovertida para outra completamente oposta, a introvertida. Essa mudança pode ser ou não de longo prazo, e pode vigorar apenas enquanto perdura a condição altamente restritiva em que se encontra. Por outro lado, devido a ela se encontrar em um momento decisivo em sua vida, de transição da vida infantil para a adulta, pode ocorrer de essas mudanças serem permanentes. Pelo menos a autora parece tender a permanecer na atitude introvertida até a interrupção definitiva do Diário…
Essa introversão se manifesta na forma de ênfase nas próprias ideias e na importância para com os próprios sentimentos, em relação aos das outras pessoas, especialmente os pais. Nesse sentido, sente-se completamente independente (p. 249). Também, por sentir mais facilidade em expressar no papel o que desejava (p. 257) – o extrovertido prefere a fala. Na verdade, Anne chega mesmo a admitir sentimentos muito estranhos para a sua idade, a ponto de mantê-los conscientes ao lado de outros, opostos, mais “normais”:
Sei que sou melhor do que mamãe num debate ou numa discussão, sei que sou mais objetiva, não exagero tanto, sou muito mais arrumada e mais hábil com as mãos, e por causa disso sinto (isso pode fazer você rir) que sou superior a ela em muita coisa. Para amar uma pessoa, preciso admirá-la e respeitá-la, mas não sinto respeito nem admiração por mamãe! (p. 249)
Essa situação psíquica de manter a consciência de dois ou mais conteúdos opostos é bem mais típica da meia-idade em diante, tendendo, então, a se estender a vários outros conteúdos. Porém, isso fica muito mais evidente quando o assunto é sexo. Anne possui um pensamento de vanguarda sobre o assunto. Os pais deveriam, para ela, contar tudo o que sabem sobre sexo aos filhos, ao invés de deixar que descubram sozinhos. Sua opinião é que não o fazem por medo de os filhos não mais perceberem o casamento como sagrado e puro. Seus pais, por exemplo, só mencionaram a menstruação quando fez 11 anos, mesmo assim sem explicar a origem do fluxo. Os outros detalhes ficou sabendo por dedução ou por meio de sua amiga Jacque. Mas com sua mudança recente, decide tocar no assunto com a irmã e com Peter, e se inteira de mais detalhes, inclusive da vida sexual dos meninos.
Anne descobre, chega a admitir e não interfere no amor que sua irmã Margot sente por Peter. Ela a compreende, sente que ela sofre quando fica com Peter, o que é muito desagradável. Elas trocam cartas sobre o assunto, e Anne dá preferência a que ela escreva em vez de conversar, “porque para mim é mais fácil dizer no papel o que desejo do que cara a cara” (p. 255-257).
Ocorrem então vários sonhos com Peter. Em um eles se beijam, mas se frustra com o rosto barbeado do rapaz, parecido com o do pai (p. 238-239). A adolescente se percebe apaixonada e angustiada com a possibilidade de não ter seus sentimentos correspondidos. Anseia que ele a beije, mas receia muito demonstrar: “Tenho de parar, tenho de ficar calma. Vou tentar ser forte de novo, e se eu for paciente, o restante virá. Mas – e esta é a pior parte – parece que vivo atrás dele. Sou sempre eu que tenho de subir; ele nunca vem me procurar.” (p. 276). Duas semanas depois eles sentam no divã de Peter, se tocam, e o rapaz acaricia seu braço, rosto e cabelos, beijando-a na orelha (p. 296). Mais duas semanas e ela refere ao sonho que a mudou, onde sentia o rosto do ex-namorado e uma felicidade maravilhosa. Notou que tinha a mesma sensação com Peter, embora não tão intensamente, até que após mais duas semanas se abraçam de novo no divã. Então a Anne cotidiana, muito confiante e divertida, deu lugar à segunda Anne, gentil e amorosa. Emocionou-se, lágrimas caíram… Ao se despedir, ia dar o segundo beijo no rosto quando seus lábios se encontraram. Os dilemas aumentaram: não deveria se retrair? Queria se casar, mas percebia que seria impossível. “Peter ainda tem pouco caráter, pouca força de vontade, pouca firmeza e coragem. Ainda é uma criança, emocionalmente não tem mais idade do que eu; só quer felicidade e paz de espírito.” (p. 304-306).
O Diário relata vários outros eventos importantes: a escassez de alimentos, as ameaças de captura, os bombardeios, as invasões do esconderijo por ladrões, o drama dos ajudadores, várias fases da segunda grande guerra, etc. Para Anne, a guerra não era obra só do governo e dos capitalistas. As pessoas comuns teriam uma necessidade destrutiva de demonstrar fúria, de assassinar e matar. Ela costuma se sentir mal, mas não se desespera. A vida no esconderijo seria uma “aventura interessante, cheia de perigo e romance, e cada privação é algo divertido a acrescentar no Diário. […] O que estou vivenciando aqui é um bom início para uma vida interessante, e este é o motivo – o único – para eu rir do lado engraçado dos momentos perigosos.” Ela não quer se tornar uma dona de casa comum (p. 311).
Num dos últimos embates contidos no Diário, Anne se recusa a não subir ao quarto de Peter. E faz isso escrevendo uma carta, afirmando como ganhara sua independência por meio do abandono, da solidão e da tristeza. Não sente mais necessidade de prestar conta aos pais de seus atos, mas também não quer fazer nada escondida. Explica que antes era barulhenta para evitar ser infeliz o tempo todo, para não ouvir sua voz interior. Vinha representando dia sim, dia não, usando uma máscara que agora se recusava a sustentar. Ele teria que confiar nela cegamente ou proibi-la terminantemente de subir. Não iria seguir simples recomendações. Logo após os dois choraram muito na conversa que tiveram. O Sr. Frank disse que Anne foi muito injusta, que não fizeram nada para merecer uma censura daquelas e que nunca recebeu uma carta tão dolorosa como aquela. Ela se arrependeu e chorou amargamente por tudo o que disse sobre ele (p. 312-315).
Em um momento, ela reflete sobre o tipo de relacionamento que possui com Peter. Sente que o conquistou e não que foi conquistada. Admite que criou uma imagem ideal do rapaz para que pudesse abrir sua alma a ele. Quando finalmente conseguiu seu intento, sentiu-se revoltada, pois percebeu que a intimidade conseguida abrangia elementos muito particulares, mas não os assuntos do seu coração. Usou intimidade para se aproximar dele, e esta tornou-se seu “salva-vidas”, ao qual se agarrava. Mas justamente esta os afastou de outras formas de amizade. Pelo menos conseguira romper seu mundo estreito e expandir o horizonte de sua adolescência (p. 364-365).
Então a adolescente escreve sua última carta a Kitty, concluindo seu Diário com “chave de ouro”. Ao longo de todo o Diário ela pontuou brevemente que era partida em duas Annes. Mas agora, por algum motivo desconhecido, surge uma necessidade de fazê-lo mais profundamente. Descreve-se como um “feixe de contradições”, de forças que se impõem de fora e de dentro. Como resultado das primeiras tem-se a Anne nº 1: não aceita a opinião dos outros, sempre sabe mais e detém a última palavra (características desagradáveis pelas quais é conhecida); a nº 2 é seu segredo. A primeira é exuberante, petulante, contém a alegria de viver e aprecia o lado mais leve das coisas.
Esse meu lado costuma ficar à espreita para emboscar o outro, que é mais puro, mais profundo e melhor. Ninguém conhece o lado melhor de Anne, e é por isso que muita gente não me suporta. Ah, eu posso ser uma palhaça engraçada por uma tarde, mas depois disso todo mundo se enche de mim por um mês. […] Meu lado mais leve, mais superficial, vai sempre tirar vantagem do lado mais profundo, e com isso vencerá sempre. Você não pode imaginar quantas vezes tentei empurrar para longe essa Anne, que é somente a metade do que se conhece como Anne – derrubá-la, escondê-la. (p. 368)
Mas ela não faz isso porque tem medo de zombarem dela, achando-a ridícula e sentimental, de não a levarem a sério. A Anne leviana consegue lidar com isso, mas a mais profunda é fraca demais. Se forçar a Anne boa a aparecer e esta for chamada a falar, ela se fecha, deixando a Anne nº 1 dizer o texto. Por isso, a Anne boa, pura, nunca é vista acompanhada, pois só é assim consigo mesma, guia-se por ela; pensa em si como feliz por dentro, fazendo os outros pensarem que é feliz por fora. “A Anne jovial gargalha, dá uma resposta ferina, encolhe os ombros e finge que nem liga. A Anne quieta reage do modo oposto. Se estou sendo completamente honesta, tenho de admitir que isso me importa, que tento arduamente mudar, mas me vejo sempre diante de um inimigo mais poderoso.” (p. 369).
Pode-se afirmar que a Anne nº 2 constitui a identificação da adolescente com a personificação do seu Diário, Kitty. Em inglês, “Kitty” costuma ser o nome que uma criança dá a um gato. Como se sabe, esse é um animal menos expressivo, mais individual, características típicas da introversão. Provavelmente o Diário promoveu ainda mais a expressão da “segunda série”, a personalidade futura da criança, como aludido anteriormente. Progressivamente, Anne toma consciência de sua persona infantil e se diferencia dela. À medida que se expressa mais e mais, uma Anne genuína, mais autônoma e independente dos pais, muito menos infantil, emerge daquela que existia praticamente em referência às outras pessoas. A menstruação enquanto segredo enfatiza isso. Seu misterioso ciclo viria lembrá-la de que não era mais criança…
A divisão em dois está relacionada a um avanço da consciência. Ao irromper na consciência e se manifestar, o conteúdo inconsciente se desfaz em pares de opostos. Temas como dualidade, gêmeos, duas frutas ou objetos, etc., indicam noções que estão prestes a serem percebidas. Isso ocorre porque só se pode reconhecer algo quando há um oposto para comparação. A oposição é uma condição essencial para o conhecimento: o branco só é percebido devido ao reconhecimento do preto. Por isso, tudo o que é consciente, tudo o que se sabe, que se está ciente, não pode dispensar os pares de opostos (JUNG, 2011, p. 410). E assim, Anne toma conhecimento de si mesma, isto é, de seu Si-mesmo, de sua essência, daquilo que é mais genuíno em alguém. Na medida em que se percebe como uma contradição, pessoas opostas dentro de si, ela se conscientiza de aspectos antes não formulados conscientemente.
Salvo melhor juízo, as reflexões sobre si mesma e a fase de maior expressão do processo de autoconhecimento de Anne se encontra na descrição da comemoração de seu aniversário (13/06/1944) até as últimas reflexões no final do Diário (01/08/1944), constantes acima. No dia 4 de agosto todos os refugiados e seus protetores foram presos. Anne e sua irmã morreram de tifo no campo de concentração Bergen-Belsen, em Hannover, Alemanha. O mais interessante é que ela começou o Diário há mais de dois anos antes, e justamente à proximidade de sua prisão, intensificou seu processo de introspecção. Talvez seu inconsciente houvesse detectado indícios subliminares à sua volta acerca da delação que alguém viria fazer ou já teria feito. Haveria também uma sincronicidade ligada à sua transformação íntima em andamento, relacionada conjuntamente aos acontecimentos simbólicos da sua separação dos pais, do amigo/paquera e dos demais; da mudança do local de permanência; e das mortes decorrentes. A morte é símbolo claro e nítido de transformação, de mudança e de separação. As aparições da amiga Hanneli e da avó, pertencentes ao além, também parecem anunciar sua própria morte, a ocorrer um ano depois. Todos esses sinais significativos apontam para o final, para o local onde o rio encontra o mar. E o Diário de Anne Frank foi de encontro à coletividade humana, fascinando pessoas de todas as idades, justamente porque sua substância, imbuída do mito, serve de testemunho de um grave evento humano, e de processos típicos do desenvolvimento da personalidade.
REFERÊNCIAS
EDINGER, Edward F. Ciência da alma – uma perspectiva junguiana. São Paulo: Paulus, 2004.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
ARENOW. Disponível em: <https://erenow.com/ww/younggirldiary/3.html> Acesso em 11/02/18.
FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. 36 Ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2016.
JOHNSON, Robert A. We: a chave da psicologia do amor romântico. São Paulo: Mercuryo, 1997.
JUNG, Carl Gustav. A dinâmica do inconsciente. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1991a, v. VIII.
______. Cartas I. Petrópolis: Vozes, 1999.
______. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
______. Seminários sobre sonhos de crianças. Petrópolis: Vozes, 2011.
LIMA FILHO, Alberto Pereira. O pai e a psique. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2002.
ZWEIG, Connie. ABRAMS, Jeremiah (Org.). Ao encontro da sombra. 1. ed. São Paulo: Cultrix, 1994.
Charles A. Resende
Psicólogo CRP 6/99598