Há diferenças essenciais entre o processo de individuação proposto por Jung e o caminho da jornada espiritual. Dentro desse processo de individuação ocorre a vivência com o numinoso, que inclui essa experiência que pode ser tida como mística, mas não há identificação total com essa experiência. A experiência é sentida e vista como simbólica, sendo necessário ser integrada à consciência e trazer modificações na vida do indivíduo.
Quando ocorre a identificação com essas experiências místicas ou certa fixação com esses símbolos, o indivíduo pode ser capturado por um arquétipo, por um complexo e isso o colocaria num nível de inconsciência perante o todo. Essa inconsciência pode ter sequelas. O individuo pode ser “arrastado” por comportamentos, padrões e vivências nada saudáveis, que ele pode vir a se dar conta só bem depois do acontecido. Muitas vezes são aquelas situações em que a pessoa só percebe realmente o que aconteceu tempos depois, e que na época não estava “enxergando” o que estava acontecendo.
A individuação, portanto não equivale a uma jornada mística, que em seu ápice outorga o prêmio da experiência da união com Deus ou da visão do Mysterium tremendum. A individuação não culmina em um ato de adoração, e também não se identifica com a resoluta via negativa de tradições religiosas como o zen-budismo. Ela comporta elementos de ambos – vivenciar o numinoso e limpar o espelho da consciência -, mas os inclui como dois movimentos na esfera de uma tarefa maior. Para o herói/heroína da individuação, tudo o mais representa afastamento da culminância da união mística na experiência numinosa. Para o herói/heroína da individuação, por outro lado, experiências numinosas são prima matéria para a obra de individuação, que prossegue de modo infinito. Permanecer ou “ficar preso” no território do numen, seja ele definido como cheio ou vazio, equivaleria a ficar incorporado no inconsciente, o que significa um estado patológico de inflação exaltada, perda dos limites e da integridade do ego, e talvez até a permanência em um estado de psicótica defesa paranoica. Tais “estados de possessão” costumam ser destrutivos para indivíduos e grupos (STEIN, 2020, p 55).
Quando essas experiências são de fato integradas à consciência, o indivíduo em geral pode experimentar grandes transformações na vida, momentos de mudanças significativas em que ele se encaminha para uma vida mais plena. Os conteúdos, ou “partes” do ser, passam a se comunicar melhor dentro de si mesmo.
Por isso é crucial esse trabalho de identificação dos complexos pessoais, familiares, que podem estar acompanhando o individuo e consequentemente direcionando sua vida.
Para concluir este capítulo, podemos dizer que o herói/heroína psicológico trabalha para se livrar de identificações e complexos pessoais sem sucumbir ao aceno sedutor de identificações e complexos arquetípicos. Uma personalidade pode imbuir-se de experiências e conhecimento do numinoso sem se deixar possuir por ele nem contar com ele para propósitos defensivos. O herói/heroína psicológico pode alcançar certa liberdade com relação aos complexos e aos deuses e também ter um vislumbre da identidade transcendente. No entanto, sempre resta uma medida saudável de respeito por toda espécie de poder, pois seria absurdo acreditar que alguém possa se livrar deles por completo (STEIN, 2020, p 56).
Referência Bibliográfica
STEIN, Murray. Jung e o caminho da individuação: uma introdução concisa. Trad. Euclides Luiz Calloni – São Paulo: Cultrix, 2020
Texto: Alessandra M. Esquillaro – CRP 06/97347