“o homem que não atravessa o inferno de suas
paixões também não as supera. Elas se mudam para
a casa vizinha e poderão atear fogo que atingirá sua
casa sem que ele perceba.”
Carl Gustav Jung
Sábado, dia 12 de agosto de 2017, um grupo de evangélicos se reuniu na praia do Arpoador no Rio de Janeiro e protestaram contra os muçulmanos. Os manifestantes carregavam cartazes com palavras de ódio à religião islâmica. Cartazes estampavam frases que o Alcorão (livro sagrado do islã) é “guia de estupro e assassinato”. Segundo a o site de notícias G1, o grupo de manifestantes entoava que muçulmanos são “assassinos”, “pedófilos” e “terroristas”.
Dias antes, um refugiado sírio identificado como Mohamed Ali, de 33 anos, foi vítima de humilhação e agressões. Vendedor ambulante de quitutes árabes, Mohamed foi agredido verbalmente por causa do ponto de venda. Um vídeo da discussão foi publicado nas redes sociais e viralizou. Nas imagens é possível ver um homem com dois pedaços de madeira nas mãos gritando: “saia do meu país! Eu sou brasileiro e estou vendo meu país ser invadido por esses homens-bombas que mataram, esquartejaram crianças, adolescentes. São miseráveis”. Adiante no vídeo, ele ainda fala: “Essa terra aqui é nossa. Não vai tomar nosso lugar não”. Os comerciantes chegam a derrubar a mercadoria de Mohamed no chão, que pergunta o motivo da agressão. Os homens, então, falam novamente para ele sair do Brasil.
Que energias psíquicas subjazem na islamofobia, recente no Brasil e muito antiga na Europa?
Para compreender claramente esse fenômeno apelamos ao conceito de sombra, desenvolvido por Carl Gustav Jung, no campo da Psicologia Analítica. Segundo Jung, a sombra foi legada à humanidade pelos estágios mais primitivos da existência, ao longo da jornada evolutiva empreendida pelo ser humano (1985, p. 173).
Jung propôs uma definição mais direta e clara da sombra: “a coisa que uma pessoa não tem desejo de ser”. Com isso, a sombra não é dotada de juízo de valor, maniqueísmos ou posições absolutas de boa ou ruim, bem ou mal, pois ela é apenas o contraponto compensatório da consciência do ego, ou seja, da consciência que o ser humano tem de si mesmo.
O ser humano tende a ocultar do mundo exterior e de si mesmo tudo que é rejeitado pelos padrões sociais. Valores, comportamentos que são deliberados como opostos à moral social são, na mesma medida, rejeitados pelo individuo. O domínio pela força bruta, ou seja, “o monstro escondido” dentro de cada um é reprimido.
Geralmente, porém, as pessoas têm medo de olhar para si mesmas, de se verem como realmente são, e assim transmutar o que pertence ao campo das sombras. Normalmente o ser humano prefere projetar no “outro” aquilo que ele rejeita em si mesmo, daí a importância de analisar com lucidez os aspectos da própria personalidade que são comumente transferidos para outras pessoas e situações. Assim, podemos considerar que as fobias, os ódios individuais e coletivos contra muçulmanos, pessoas homoafetivas, pessoas de outras etnias são projeções.
O ser humano sempre temeu sua própria sombra, pois nela pressente a presença de tudo que, na verdade, desejaria esquecer ou fingir que nunca existiu. Mas sem a conscientização da natureza sombria não há processo de individuação que se sustente. É importante também perceber que este movimento de transformação é constante, pois uma vez que admite a existência da natureza sombria em seu interior, o Homem terá que lutar incessantemente contra ela, pois enquanto ele tiver o livre arbítrio, que pressupõe a escolha, algo será sempre relegado à margem, ou seja, ao âmbito da sombra.
Em geral, tendemos a esconder e a afastar de nossa consciência e dos outros tudo o que é demoníaco em nós mesmos: sentimentos de poder, ideias cruéis e assassinas, impulsos asquerosos e ações moralmente condenáveis. Ou então, escondemos aquilo que a cultura considera horrível e desadaptado, nossas fraquezas e os sentimentos que podem trazer frustração tais como inveja, cobiça, ambição, ciúme, desamparo, impotência, derrota, solidão, sofrimento. Escondemos também a dor de conviver com esses sentimentos.
A sombra é o pano de fundo da questão etnocêntrica. Temos a experiência de um choque cultural. De um lado, conhecemos um grupo do “eu”, o “nosso” grupo, que come igual, veste igual, gosta de coisas parecidas, conhece problemas do mesmo tipo, acredita nos mesmos deuses, casa igual, mora no mesmo estilo, distribui o poder da mesma forma, empresta à vida significados em comum e procede, por muitas maneiras, semelhantemente. Aí, então, de repente, nos deparamos com um “outro”, o grupo do “diferente” que, às vezes, nem sequer faz coisas como as nossas ou quando as faz é de forma tal que não reconhecemos como possíveis. E, mais grave ainda, este “outro” também sobrevive à sua maneira, gosta dela, também está no mundo e, ainda que diferente, também existe. E quando esse “outro” apresenta características que o “eu” não suporta de tão temerário o “outro” emerge como o “mostro” que precisa ser d Atualmente vivemos no ocidente o fenômeno no qual o Islamismo é uma religião de fanáticos e impiedosos terroristas. É essa a imagem que a mídia ocidental constrói do islã. Poderíamos perguntar: que temor acerca da sombra acendeu o comportamento etnocêntrico?
Edward Said em seu livro “Orientalismo” coloca o Oriente como invenção do Ocidente. Em outras palavras, a construção social e discursiva de um ‘outro’ serviu, por um lado, para afirmar a identidade da própria Europa e, por outro, foi funcional para a expansão colonial europeia rumo ao controle e à exploração de grandes áreas territoriais, além de diversos povos não ocidentais. É a transformação do não ocidente real em uma representação do Oriente (que por si só simplesmente não existe) o objeto do estudo de Said. O orientalismo faz parte de uma estratégia colonial e discursiva na qual o Ocidente é identificado com a razão, a civilização e o masculino, enquanto o Oriente o é com a irracionalidade, a barbárie e o feminino. O discurso do orientalismo é tanto decorrência quanto reforçador desse padrão de dominação colonial.
O efeito sombra do Islã está por toda parte. A prova de sua disseminação pode ser vista em todos os aspectos da vida. Lemos sobre ele on-line. Podemos vê-lo nos noticiários da TV e também em amigos, familiares e estranhos na rua. E talvez possamos reconhecê-lo de forma mais expressiva em nossos pensamentos, comportamentos, e senti-lo nas interações que fazemos com os outros.
Receamos que, se lançarmos luz nessa escuridão, isso nos fará sentir uma imensa vergonha ou, até pior, nos levará a expressar nossos piores pesadelos. Tornamo-nos temerosos quanto ao que podemos encontrar se olharmos dentro de nós mesmos; portanto, em vez disso, escondemos a cabeça e nos recusamos a enfrentar o lado sombrio, preferindo insultar e agredir.
A sombra é um tesouro escondido. Reprimi-la pode significar um empobrecimento da vida psíquica. Integrá-la pode significar um crescimento da psique coletiva. O caminho da tolerância é integrar a “sombra” ou como diz a música de Gilberto Gil:
O mundo da sombra, caverna escondida; Onde a luz da vida foi quase apagada
O mundo da sombra, região do escuro; Do coração duro, da alma abalada, abalada
Hoje eu canto a balada do lado sem luz; Subterrâneos gelados do eterno esperar
Pelo amor, pelo pão, pela libertação; Pela paz, pelo ar, pelo mar
Navegar, descobrir outro dia, outro sol; Hoje eu canto a balada do lado sem luz
A quem não foi permitido viver feliz e cantar; Como eu
Ouça aquele que vive do lado sem luz ;O meu canto é a confirmação da promessa que diz
Que haverá esperança enquanto houver; Um canto mais feliz
Como eu gosto de cantar; Como eu prefiro cantar
Como eu costumo cantar; Como eu gosto de cantar
Quando não tão a balada, a balada, a balada
A BALADA DO LADO SEM LUZ (Gilberto Gil)
Este é, acredito o plano para onde a consciência encaminha nosso pensamento. Aí, no lugar em que ela exerce seu esforço de aprendizado, sentimentos, pensamentos e práticas etnocêntricas se complexificam, se transformam, se relativizam. Aí também, no encontro entre o “eu” e o “outro”, emerge uma compreensão do ser humano, a um só tempo, problematizada e generosa.
Referências
JUNG, Carl G. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1985
JUNG, Carl Gustav. O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1988
_____. Aion Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 1982.
_____. A prática da psicoterapia. Petrópolis: Vozes, 1987.
ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é Etnocentrismo. São Paulo: Editora Brasiliense 1988
SAID, Edward. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Texto: Jorge Miklos