As duas partes de Malévola
Podemos dividir o filme Malévola em duas partes. Na primeira o filme nos apresenta dois reinos distintos e em guerra: o reino de Moors, onde vivem criaturas míticas, incluindo a fada Malévola, e o reino dos humanos. Essa divisão representa uma clara divisão entre o inconsciente, onde habitam os arquétipos e a consciência, no reino dos humanos.
Primeira parte
Na primeira parte do filme temos as seguintes figuras, o rei velho, Malévola e Stefan, o jovem pelo qual a protagonista se apaixona.
O rei ambicioso que está para morrer precisa escolher um sucessor digno para o trono. Nota-se que no reino dos humanos não há uma figura feminina expressiva. Não vemos rainha e o rei apenas cita a sua filha. Isto demonstra que a atitude da consciência encontra-se extremamente unilateral, desequilibrada.
O rei simbolicamente incorpora o princípio divino, do qual depende o bem-estar físico e psíquico de toda a nação. O rei pode ser considerado um símbolo do Self manifestado na consciência coletiva. E esse símbolo, conforme Von Franz (2005) tem necessidade de renovação constante, de compreensão e contato, pois, de outro modo, corre o perigo de se tornar uma fórmula morta — um sistema e uma doutrina esvaziados de seu significado e tornar-se uma fórmula puramente exterior.
A atitude unilateral, então, desse reino é a ênfase no Logos. Não há feminino, não há Eros, não há relacionamento com o irracional. E onde falta o amor o poder se instala, por isso, deve-se escolher um novo rei para a renovação.
Self e necessidade de renovação
Entre os pretendentes ao trono está Stephan, que foi o amor de Malévola na infância. A ele, a fada entregou seu coração. Entretanto, Stephan a trai. Movido pelo poder e ambição, ele corta suas asas e as entrega ao rei. Garantindo então seu lugar como novo regente. E assim, o elemento feminino ainda não pode ser resgatado, a atitude unilateral permanece.
Essa atitude é comum em muitos homens, que movidos pelo medo de seu inconsciente, “cortam as asas” de sua mulher. Cortando sua independência, seu progresso profissional e até suas amizades. Eles se apresentam de forma amorosa, prometendo amor verdadeiro, mas visam o poder sobre elas.
Dessa forma, assim como Stephan, eles traem sua anima, traem sua própria alma.
Malévola que era a protetora de Moor pode ser considerada a protetora do reino do inconsciente. Uma representação da anima.
Conforme Carl Jung, a anima é responsável por fazer a ligação entre o consciente e o inconsciente do homem. Ela é o guia dele, seu psicopompo. É uma figura arquetípica que contem todas as experiências do homem com a mulher através de toda a história da humanidade, e por meio dela o homem pode compreender e a natureza da mulher.
Malévola transitava entre os dois mundos e executava esse papel. O fato de possuir asas é uma clara alusão ao deus grego Hermes, com suas sandálias aladas. Hermes era o deus mensageiro dos gregos. O único que podia transitar entre todos os mundos. Uma imagem arquetípica do psicopompo.
A queda de Malévola e a renegação
Então, quando Stephan corta suas asas, ela perde essa função de guia e ponte e fica renegada ao inconsciente.
Outro símbolo digno de nota são seus chifres. O chifre representa virilidade, força, poder e fertilidade. Ou seja, ela é a responsável pela fecundidade do reino e da consciência.
O aspecto feminino do homem, quando rejeitado, e reprimido acaba se tornando não diferenciado. No inconsciente ela ganha mais força e se volta contra a consciência unilateral, se tornando primitiva, vingativa e amarga.
Assim o feminino interior, a anima, que representa o aspecto da vida, agora se volta contra a atitude consciente, como aspecto da morte.
Segunda parte
Agora chegamos à segunda parte do filme. E nela temos agora os seguintes personagens: Stephan como rei, que se casou e teve uma filha Aurora, as três fadas, o corvo Diaval e, claro Malévola.
Nessa segunda parte agora temos o oposto da primeira. Na primeira, havia um desequilíbrio onde o masculino predominava. Agora o feminino é mais forte. Temos mais figuras femininas representadas pelas fadas, Aurora e Malévola.
A psique sempre busca o equilíbrio compensatório. Mas esse equilíbrio só ocorre por meio da enantiodromia. Esse é um ciclo natural da psique, pois tudo deve se reverter em seu oposto para que haja aprendizado e flexibilidade.
E agora vemos uma consciência na fase matriarcal, em compensação a fase anterior patriarcal. E nessa fase o feminino ferido e traído busca sua vingança, mas mais que isso busca seu lugar de direito.
Rejeição do feminino
Mas a atitude consciente coletiva, representada pelo rei Stephan, ainda rejeita esse feminino. Vemos isso em seu comportamento, pois além de ainda querer eliminar Malévola, ele envia sua filha amaldiçoada para longe aos cuidados das três fadas, negando assim sua função paterna de proteção e simplesmente ignora sua esposa que está à beira da morte.
Um homem quando rejeita seu feminino é frequentemente tomado por ele. Se tornando mal-humorado, pois ao invés de ajudá-lo a administrar suas emoções a anima o carrega de afetos primitivos e indiferenciados.
Assim como Stephan, o homem se afunda cada vez mais em um humor altamente opressivo, rejeitando seus relacionamentos mais próximos e não tendo consideração por ninguém.
Malévola, então, traída e amargurada não é mais uma fada. Ela se tornou uma bruxa. Ela agora é a encarnação da Mãe terrível.
A mãe terrível
A Mãe Terrível liga-se à morte, ruína, aridez, penúria e esterilidade. Nota-se que ela cria uma barreira de espinho ao redor do reino de Moor. E dessa forma, ninguém mais tem acesso ao inconsciente. E por isso a terra se torna estéril, sem vida.
Nos contos de fada, a bruxa, representante da Mãe Terrível, sempre está acompanhada por um animal. Esse que representa o animus terrível dela sempre a ajuda.
No caso do filme ela é auxiliada por um corvo, que se transforma em homem, Diaval.
O corvo é associado à bruxaria, magia, azar, mau presságio, mas também fertilidade, esperança e sabedoria.
Ele representa as asas que ela perdeu, sendo uma alusão clara a sua função de animus.
Porém, o fato de se transformar ocasionalmente em homem, demonstra uma semente de evolução em Malévola. Seu animus não é totalmente primitivo e por vezes a esclarece e serve de consciência para ela.
Malévola, como Mãe Terrível, então se volta contra a criação do rei (sua filha).
E nesse momento a Mãe Terrível exige um sacrifício para aplacar sua ira.
Aqui vemos um tema mitológico recorrente: o do sacrifício de uma virgem. O tema do sacrifício, em termos psicológicos, significa que para se alcançar um avanço na consciência, e para uma mudança de atitude a velha forma deve morrer.
O sacrifício do feminino
Ou seja, para se chegar a um equilíbrio entre masculino e feminino alguém deve ser sacrificado e submetido aos domínios da bruxa.
A princesa Aurora é então a vitima escolhida. A bruxa lhe lança uma maldição do sono da morte. Seu pai, a envia para longe como forma de proteção e ela não sabe quem ela é e nem que está sob uma maldição.
Ela passa a viver com as três fadas escondida, porém essas são inábeis em seu cuidado e proteção. Logo, devido a sua curiosidade, ela passa a viver em Moor com Malévola.
Como nos contos de fada, a princesa perdeu sua mãe representante da Mãe Boa e agora passa a conviver com a Mãe Terrível.
O fato de ir para Moor, o mundo do inconsciente faz uma alusão ao mito de Inanna, que empreende uma descida ao mundo subterrâneo de sua irmã sombria Ereshkigal.
Redenção, alteridade e alteridade
E é nesse instante, que Malévola começa a encontrar a redenção, uma vez que ela passa a conhecer o amor verdadeiro na forma da maternidade.
Sua redenção não poderia vir pelo masculino visto que este a traiu, mas por uma menina que a faz relembrar seu lado amoroso, que a faz recordar de um tempo em que era feliz. É pela compaixão de Aurora que ela volta a ter esperanças e a amar.
E assim Malévola consegue resgatar suas asas, voltando a ter a sua função de psicopompo. O rei Stephan encontra o destino de todo aquele que se encontra engessado em uma atitude unilateral enrijecida, a morte.
E a consciência coletiva encontrou seu equilíbrio entre os opostos com um quarteto que passa a representar a Alteridade e Totalidade: Aurora e o Príncipe e Malévola e Diaval.
Bibliografia
JUNG, C. G. Símbolos da Transformação. Vozes. Petrópolis: 1986.
__________ O eu e o inconsciente. 21 ed.Vozes. Petrópolis: 2008
NEUWMAN, E. A Grande Mãe. Cultrix. São Paulo: 2006.
VON FRANZ, M. L. Mitos de Criação. 2 ed. Paulus. São Paulo:2011.
________________ A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo:2005.
________________ A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo:2002.
________________ Animus e Anima nos contos de fada. Verus. Campinas: 2010.