Na obra Tipos Psicológicos, Carl Jung nos forneceu um sistema de orientação do ego que se baseia em sua relação com o mundo exterior e interior por meio das funções psíquicas (sensação, intuição, pensamento e sentimento) e das atitudes (introvertida e extrovertida).
As funções psíquicas foram divididas em dois grupos: racionais (pensamento e sentimento) e irracionais (sensação e intuição). As funções racionais, Jung classificou como julgativas e as irracionais funções apreciativas.
Todos nós em nosso desenvolvimento psíquico acabamos por desenvolver uma função, que passa a ser então, usada com maior facilidade pelo ego em seu manejo com o mundo. A essa função Jung deu o nome de função principal.
Mas esse desenvolvimento da função superior se dá à custa da repressão da função inferior, ou seja, aquela que é oposta à superior. Assim ocorre com todos nós, isso faz parte do nosso desenvolvimento como seres humanos. No entanto, em determinado momento da vida devemos olhar para ela e nos debruçar sobre qual o ensinamento ela tem para nos trazer.
Na formação da personalidade humana existe uma imensa gama de possibilidades de desenvolvimento, mas em geral desenvolvemos e formamos aquelas possibilidades que mais se adaptam ao meio ambiente. É uma forma arcaica de sobrevivência.
O homem é um ser gregário e que precisa se sentir pertencente e aceito.
Por exemplo, alguém que possui uma boa inteligência e que vive em um lar onde o racional e o estudo são valorizados irá desenvolver ainda mais seu intelecto. E mesmo que essa não seja sua tendência natural, irá desenvolver o intelecto para estar em consonância com esse ambiente. No entanto, a função oposta, o sentimento, ficará indiferenciada e arcaica. Essa pessoa excluirá as tendências sentimentais de suas escolhas.
Sobre a problemática da função inferior falei com mais detalhes em um texto anterior.
Aqui, nesse texto, quero comentar como a função inferior aparece nos contos de fadas e como os mesmos mostram caminhos para a aceitação e solução dessa parte da personalidade que fica encoberta pelo medo.
Alguns contos de fadas como As três plumas dos Grimm e A Czarina Virgem, o herói é uma figura desajeitada, é o filho mais jovem e desprezado pelo pai e irmãos.
Esses heróis desajeitados e inadaptados correspondem à função psíquica menos desenvolvida, ou seja, a inferior.
Outros contos onde o herói parece não estar adaptado a realidade do local, ou que não faz parte da corte e é alguém do povo e pobre, também mostram de forma menos clara a função inferior.
No conto de fadas Cinderela, também vemos a heroína como um símbolo da função inferior. A madrasta representa a função superior já desgastada e em mau funcionamento e as duas irmãs, como funções auxiliares da consciência, já não têm força para auxiliar o ego.
A estrutura então que se forma no conto é a seguinte: dois filhos são inteligentes e amados representando o fundamento básico para a construção das duas funções auxiliares no ser humano — e o filho mais novo, ou enteado, seria o Tolo representando a base da construção da função inferior. Contudo o Tolo não é somente isso, ele é também o herói, e toda a história está centrada nele (Von Franz, 2005).
O herói ou a heroína nessa estrutura é o mais novo(a) ou mais fraco(a), sendo sempre desprezado.
O fato de serem heróis significa que a função inferior desprezada é capaz de resolver problemas que a consciência não dá mais conta, liberando energia e um novo valor para a consciência do ego.
Em termos práticos essa é aquela situação, onde ficamos paralisados e não vemos solução para o nosso problema e tudo o que fazemos conscientemente dá errado. Os meios costumeiros e normais e agir não funcionam mais e nos sentimos impotentes e devemos lançar mão de uma atitude inusitada e estranha. É aquele momento em que fazemos justamente aquilo que dissemos que nunca iríamos fazer.
Temos que solucionar um problema com o nosso lado mais fraco e a vida acaba exigindo de nós uma nova atitude e forma de viver.
Um intuitivo, que possui dificuldade em lidar com o lado prático da vida e que vive no mundo das possibilidades, terá que olhar para o aqui e agora e assumir compromissos com a dura realidade.
Os contos de fadas podem então nos mostrar como transformar essa parte mais fraca, inadaptada e desprezada em herói ou heroína.
Geralmente os dois irmãos mais amados e mais hábeis não assumem a tarefa ou não conseguem realizá-la de forma consistente. Isso significa que quando precisamos desenvolver nossa função inferior as funções auxiliares só são capazes de alcançar o simples, trivial e habitual. Elas não são capazes de trazer o verdadeiro valor e o extraordinário.
Para isso precisamos ousar, transgredir, encontrar o inusitado em nossas vidas.
É importante também citar que alguns contos de fadas com essa estrutura deixam em aberto qual das quatro funções representa o herói ou a heroína e qual das atitudes vemos ali, se extrovertida ou introvertida. Isso significa que se trata de uma fôrma que será preenchida com a vida humana.
Cinderela por exemplo, se mantém introvertida, mas quando vai ao baile possui características extrovertidas, não deixando de forma clara qual a sua atitude mais habitual.
O conto então só documenta a questão fundamental e essencial do desenvolvimento da função inferior.
Mas isso não é uma regra, alguns mostram de forma mais clara qual é a função representada pelo herói.
O que é mais importante compreender então, é que o conto de fadas, traz uma infinita escala de possibilidades e vem sempre dizer algo ao homem, tocando profundamente em sua alma.
Conhecer o seu conto favorito, ou aquele com que se identifica mais pode colocar em movimento aquilo que ainda não pode se expressar.
Em momentos em que nos encontramos na encruzilhada e que não conseguimos solucionar problemas de forma costumeira, o conto pode nos auxiliar a trazer o inusitado e o diferente. Ele nos ensina que o que estamos desprezando em nós é justamente aquilo que precisamos para modificar a nossa vida.
Texto: Hellen Reis Mourão.
Referências bibliográficas:
DIECKMANN, H. Contos de fadas vividos. São Paulo: Paulinas, 1986.
VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005.