Os vilões geralmente são figuras que nos causam emoções fortes e antagônicas.
Torcemos para que ele sofra e receba o castigo que merece, no entanto, sentimos um fascínio inexplicável por essa figura sombria.
Nos contos de fadas clássicos observamos que as figuras dos heróis e vilões apresentam uma dicotomia bem e mal de forma bastante acentuada.
O mocinho, ou mocinha, nos contos parecem irreais e “bonzinhos” ao extremo. Parecendo que essas figuras nucleares dos contos de fada não têm emoções, e que são figuras abstratas e não humanas.
Ele, ou ela, é completamente preto, ou completamente branco, e tem reações estereotipadas: ele salva a dama e mata o leão, e não teme a velha da floresta etc. Sendo algo completamente esquemático (Von Franz, 2005).
Isso ocorre porque o herói e a heroína nos contos são modelos arquetípicos. Eles não representam um ego humano, mas representam um modelo de ego funcionando de acordo com o SELF. São modelos que devem ser observados, pois demonstram o ego funcionando corretamente, ou seja, um ego que funciona de acordo com as solicitações do SELF (Von Franz, 2005).
É importante termos em mente, então, que as princesas e heróis nos contos de fadas são figuras simbólicas e não um ser humano comum. Se tomarmos essa figura de forma literal, ela não fará nenhum sentido e perdemos a essência do aprendizado que a história nos traz.
O mesmo ocorre nos sonhos. Na psicologia analítica não analisamos os sonhos de forma literal, pois se trata de um material simbólico, uma metáfora para anunciar uma mensagem do inconsciente e mostrar a situação psíquica do sonhador.
Podemos supor, então, que o vilão faça esse contraponto da maldade que falta nos heróis. Que bruxas, magos, ogros e outros antagonistas, sejam a sombra do herói ou da princesa.
Para isso é importante que saibamos do que se trata a sombra, que não é um conceito tão simples.
Na psicologia junguiana, definimos sombra como a personificação de certos aspectos inconscientes da personalidade que poderiam ser acrescentados ao complexo do ego mas que, por várias razões, não o são (Von Franz, 2002).
O ego humano possui a tendência – à medida que vai se desenvolvendo e se estruturando – em se identificar com características ideias da personalidade, com aquilo que é valorizado pela família, pelo meio e pela cultura. Somos condicionados a sermos polidos, generosos, educados e assim nos revestimos com uma persona adequada ao convívio com a sociedade e com os valores coletivos.
Com isso características que não são adequadas à nossa autoimagem, como agressividade, egoísmo, inveja, são relegadas à penumbra do inconsciente. Ego e sombra formam então pares de opostos e se desenvolvem e a partir da mesma experiência de vida.
A sombra é, em parte, a parcela obscura, não vivida e reprimida da estrutura do ego.
Contudo, geralmente, quando investigamos a fundo a sombra, descobrimos que consiste em parte de elementos pessoais e em parte de elementos coletivos. Aquilo que foi reprimido pelo coletivo é assimilado pela sombra pessoal.
A sombra se constrói a partir de qualidades reprimidas advindas de valores culturais que impõe um ideal de conduta que tomamos como nossos na construção de nossa autoimagem.
Von Franz (2002) aponta que é relativamente fácil reconhecer esses elementos e é isto que chamamos “tornar a sombra consciente”, através de uma certa dose de insight, com a ajuda de sonhos e assim por diante — e é normalmente nesse ponto que a análise é interrompida.
No entanto, as pessoas podem até saber qual é a sua sombra – observando suas projeções, por exemplo – mas não sabem integra-la nem expressá-la de forma adequada na vida cotidiana.
Fornecer espaço na vida para a sombra, sem sucumbir a ela, é um ato heroico, pois ela traz mudanças não somente para a vida da pessoa, como afeta outros trazendo mudanças que não agradam às pessoas do seu meio, uma vez que elas terão que se readaptar e também olhar para sua própria sombra – algo que não é agradável de se fazer.
É um ato de grande coragem enfrentar e aceitar uma qualidade que não nos é agradável, que se escondeu por muito tempo. O grande problema ético surge quando se decide expressar a sombra conscientemente. Isso requer grande cuidado e reflexão, para que não se produza uma reação perturbadora e uma autodestruição.
Nos contos de fadas o herói espelha a forma ideal de integração com a sombra. Ele possui a capacidade de saber lidar com a sombra de forma ideal, e ainda assimilar seu conteúdo sem ser destruído por ela.
E geralmente vemos a sombra, ou seja, o lado não desenvolvido da personalidade, na figura do vilão.
No entanto, a sombra nos contos de fadas possui um caráter arquetípico e espelha uma sombra coletiva, ou seja, aspectos sombrios que foram relegados e reprimidos da consciência, que são comuns a toda a humanidade.
Contudo, como aponta Von Franz (2002), quando partes de nossa sombra pessoal não estão suficientemente integradas, a sombra coletiva pode passar furtivamente por essa porta.
Consequentemente devemos estar conscientes da existência desses dois aspectos, porque este é um problema ético e prático capaz de causar enormes danos.
Por essa razão, os contos de fadas podem na auxiliar na conscientização de nossos aspectos sombrios e assim integrarmos esses aspectos e nós, ao mesmo tempo que contribuímos para o aumento de consciência coletiva, pois esta consiste na soma de todas as sombras individuais.
Gostaria de usar como exemplo, para observarmos a questão da sombra um dos contos de fadas mais famosos da humanidade: Cinderela.
La temos a questão da princesa, a madrasta má e as irmãs postiças. Inicialmente temos uma questão de quatro pessoas. Essa estrutura quadrupla é comum nos contos de fadas e espelha uma questão muito comum na psicologia analítica, que é o trabalho com as quatro funções da consciência e o enfrentamento da função inferior.
A função inferior é sempre oposta e incompatível com a atitude habitual da consciência. Por exemplo, um tipo pensador, racional e investigativo terá muita dificuldade em expressar seus sentimentos e a falar de suas questões éticas. Não que ele não sinta nada, mas ele possui dificuldade em acessar e a expressar o que sente, e quando faz é de uma forma bem infantil, o que o deixa muito embaraçado. Um exemplo famoso desse tipo vemos em Sherlock Holmes, cuja inteligência e racionalidade são bem refinadas, mas suas expressões de sentimentos são desajeitadas e sua falta de questionamento ético é claramente nula em suas ações. Tudo o que um tipo pensador quer é chegar a solução de um problema, ou questão, não importa por cima de quem ou o que ele passará.
A sombra então no tipo pensador irá se revestir do sentimentalismo de sua função inferior. E isso ocorre com os outros tipos também.
No conto Cinderela, a heroína mostra aspectos de uma função inferior relegada e desconsiderada pela consciência (madrasta) e as irmãs (funções auxiliares). Não importa a qualidade da função superior em questão, esse conto pode se aplicar a qualquer tipo.
Mas o conto, assim como os sonhos, temos uma função compensatória para a consciência, e por isso a função inferior (Cinderela) é revestida de importância e é quem restabelece a ordem de harmonia da psique.
Além disso, podemos ver no conto a questão da sombra entre irmãs.
Para uma mulher, irmã é a outra pessoa mais semelhante a ela mesma dentre todas as criaturas do mundo. Ela é do nosso mesmo sexo e geração, carrega a mesma herança biológica e social. Tem os mesmos pais; crescem na mesma família e são expostas aos mesmos valores, premissas e padrões de interação (Dowing, 2011).
Ainda assim, essa outra pessoa tão semelhante é, indiscutivelmente, outra. E que serve como comparação com a qual se define a si mesma.
Irmãos/irmãs do mesmo sexo parecem ser um para o outro, paradoxalmente, tanto o eu ideal quanto “a sombra”. Eles estão envolvidos num processo mútuo, único e recíproco de autodefinição. Embora a filha conceba a mãe tanto quanto a mãe concebe a filha, o relacionamento mãe-filha não é tão simétrico quanto o relacionamento irmã-irmã (Dowing, 2011).
Percebemos nas famílias que há uma polarização entre as irmãs e uma competição entre elas. Uma é tida como “a mais bonita” enquanto a outra é a “mais inteligente” por exemplo.
A dinâmica se reflete da seguinte forma: “Eu sou quem ela não é. Ela é o que eu mais gostaria de ser mas acho que nunca serei, e também o que mais me orgulho de não ser mas tenho medo de vir a ser.”
Em Cinderela essa dinâmica é visualizada no relacionamento dela com as irmãs, através da inveja, sentimento sombrio que se desdobra com facilidade nas relações entre irmãos do mesmo sexo. A sombra invejosa de Cinderela se projeta nas irmãs. No fundo, ela também gostaria de ter o amor materno e a atenção que ela não tem.
A Irmã e o Irmão arquétipos, tão presentes na nossa vida psíquica {independentemente da experiência literal) quanto a Mãe e o Pai.
No conto, podemos observar que essa relação entre irmãs é bastante influenciada pela mãe. Se uma mãe anseia por uma irmã que não teve, pode idealizar a relação de suas filhas e tentar manter submersa a rivalidade entre elas, o que pode prejudicar em muito a assimilação da sombra das meninas, pois na sombra está aquilo que a garota deseja e teme ser.
Segundo Freud, embora tenhamos transformado o amor pais-filhos em algo sagrado, mantivemos o caráter profano do amor fraterno. O arquétipo da irmã para mulher pode ser vivenciado como algo menos esmagadoramente numinoso que o arquétipo da Mãe. A irmã é uma mulher e não uma deusa, algo comum de ocorrer na projeção do amor mãe e filha.
Com a irmã é possível para a mulher compreender aquilo que a torna humana, pois é essa uma das funções mais importantes da sombra, impedir a inflação do ego e a identificação com conteúdos numinosos.
A humilhação de Cinderela com essa sombra fraterna permitiu que ela se tornasse mais humana, mais tridimensional. A inveja que ela sentiu das irmãs mobilizou – a à ação (ir ao baile).
As mais profundas reflexões de Jung sobre o significado interior de “ser irmão” se inspiraram, não nos irmãos antagônicos, e sim nos Dióscuros gregos: os gêmeos Castor e Pólux, um mortal e o outro imortal, tão devotados um ao outro que nem na morte querem separar-se (Dowing, 2011).
Em Cinderela vemos o esquema proposto por Jung no processo de individuação. A sombra como personificação dos aspectos desvalorizados e negados da nossa história pessoal, representada pelas irmãs; aspectos esses que precisamos reintegrar antes de estarmos prontos para o verdadeiro trabalho de individuação, que se faz através do embate com os arquétipos do sexo oposto (Anima e Animus), no conto simbolizado pelo o príncipe. O último estágio da jornada em direção à totalidade psicológica, como Jung a descreve, mais uma vez envolve um arquétipo que aparece como uma figura do mesmo sexo, o Self (no conto representado pela fada madrinha).
No conto podemos observar que esse não é um processo linear, e que será sempre retomado para o aprofundamento da personalidade.
Para finalizar, então, Jung comumente denomina a sombra como “irmã” ou “irmão”, o nosso duplo, aquele com o qual somos obrigados a conviver, não podemos nos separar completamente e no qual fatalmente nos renderemos por amor em nosso processo de individuação.
No conto de fadas A Princesa Enfeitiçada, dos Grimm, o herói recebe a ajuda de um espirito que age como seu irmão de jornada, auxiliando no salvamento e confronto com a Anima.
Portanto, é esse irmão – irmã, que nos auxiliará no confronto com a Anima ou Animus. Sem sua ajuda sucumbimos aos seus poderes e somos dominados por essas forças.
Quer saber mais? Acesse: https://goo.gl/qJA1fk
—
Referências bibliográficas:
DOWING, C. in ZWEIG, C; ABRAMS, J (orgs.). Ao encontro da sombra: o potencial oculto da natureza humana. São Paulo: Editora Cultrix, 2011.
VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005.
________________. A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo: 2002.0000