Inicio esse texto apresentando a parábola da biga, que Platão apresentou em seu diálogo Fredo (seções 246a – 254e) usa para explicar sua visão a respeito alma humana.
Através de um diálogo com Sócrates, ele dá uma explicação onde usa essa parábola em uma discussão do mérito do amor como “divina loucura”.
Na parábola Platão fala de um condutor guiando uma biga puxada por dois cavalos alados. Um cavalo é branco, tem um grande pescoço, é bem educado, corre sem chibatadas, tem boa índole, é dócil, e segue o caminho que leva à contemplação. O outro é preto, pescoço curto, mal alimentado e problemático, tem má índole, é indócil, deseja retornar para a terra.
O condutor da biga seria a representação do intelecto, da razão ou da parte da alma que deve guiar o espírito à verdade; o cavalo branco representa o impulso racional ou moral ou a parte positiva da paixão (ou a indignação correta); o cavalo preto representa as paixões irracionais da alma, o apetite ou a natureza concupiscente. O condutor dirige a biga (metáfora da alma) tentando impedir que os cavalos sigam direções opostas.
Essa imagem da biga, condutor e os cavalos seria a metáfora da loucura divina.
Essa loucura divina, na qual Platão acreditava, seria a base fundamental de toda criatividade.
É senso comum que a genialidade ande de mãos dadas com a loucura. O poder criativo caminha lado a lado com instabilidade psíquica. As variações extremas de humor, manias, fixações, dependência de álcool ou drogas ainda hoje atormentam a vida de muitas mentes criativas.
Carl Jung cita que se sentiu diversas vezes próximo a loucura, e relata essas experiencias em seu Livro Vermelho. Contudo, essas experiencias que o aproximaram da loucura foram a fonte de sua criatividade para que pudesse criar a sua obra.
Assim cada forma de loucura tem uma origem divina.
A parábola de Platão sobre a alma dividida dá então a dimensão do fio inicial da argumentação platônica: ‘fazer amor’ pode até ser uma necessidade, um prazer, uma realização. Porém, uma necessidade, um prazer e uma realização do corpo. Esse ‘fazer amor’ apenas cria prisioneiros da empiricidade, das coisas do mundo, faz esquecer. O mergulho demasiado às paixões do corpo leva, inexoravelmente, ao desregramento.
Mas para Platão o encontro com o delírio erótico, torna possível o encontro do sagrado com o profano.
A loucura divina ocorre na oposição razão e desrazão.
Mas o que isso tem a ver com a Mitologia Grega?
Podemos encontrar essa ideia de alma dividida de Platão na Mitologia Grega, no simbolismo do Oráculo de Delfos e nos deuses que o regiam.
O Oráculo de Delfos, localizado na cidade de Delfos, região central da Grécia, foi um dos mais famosos oráculos do mundo grego antigo. O Deus Apolo era o regente do oráculo, que matou a serpente guardiã Pyton e assumiu o lugar de regente.
Apolo não era o único deus em Delfos. Ele dividia a regência com seu irmão Dioniso.
Dionísio passava o inverno em Delfos e o verão em Atenas, e era também venerado lá; a coexistência destes cultos era uma prova de respeito mútuo, entre duas forças antagônicas.
Apolo era o deus da beleza. Da perfeição, da moderação, harmonia, equilíbrio e razão. Era ligado à ordem social, sendo um símbolo da adaptação do homem à vida externa, devido ao seu caráter civilizador.
Mais ligado à esfera racional, à vida cotidiana, à arte e à ordem social, preservando, contudo, seu papel de inspirador da profecia e portador da palavra divina, ou Logos, também um símbolo do espírito e do intelecto. Sua inspiração vinha da esfera do pensamento e da lógica.
Uma imagem arquetípica que auxilia o ego na adaptação ao mundo externo e suas exigências.
Apolo era a antítese e o complemento de Dionísio,
Dioniso o deus do vinho, da loucura, dos excessos, da alternância entre as estações do ano, das relações entre corpo e alma, da mescla entre o divino e o profano, embriaguez, mistérios ocultos, das emoções descontroladas, da transgressão à ordem estabelecida, da embriaguez e das orgias.
Desregrado, depravado, diferenciava em muito de Apolo que abominava o descontrole emocional e a afetação dos instintos. O deus do vinho também era o deus da loucura e do desmembramento.
Desde sua infância Carl Jung percebe em si e a presença de duas personalidades: a personalidade número 1 e a personalidade número 2. A personalidade número 1 é a adaptada a sua idade e ao meio em que ele vive. Já a personalidade número 2, é misteriosa, possuidora de um conhecimento de origem desconhecida, de outro tempo e lugar e não é adaptada ao mundo em que ele vive.
Jung estabelece um diálogo entre as duas personalidades por meio da imaginação ativa, que se nomeiam Espírito da Época e Espírito das profundezas. O espírito da Época, se apresentou a ele e se apresenta a nós em nossa luta pela vida, na batalha do Ego por um lugar no mundo, na necessidade de autoafirmação, na busca de um trabalho e na adaptação social. Apesar dessa adaptação externa ser necessária, ao atender o espírito da época, perdemos o contato com desejos, instintos inconscientes e assim com a Totalidade.
O Espírito das profundezas faz a conexão com a Totalidade, com o mundo dos arquétipos. Nos reconecta com nossas profundezas. É o mundo do irracional, onde a palavra não se ajusta, mas apenas imagens e emoções. É a conexão do ego com o mundo dos arquétipos e dos instintos primitivos. Através desse espírito se faz a adaptação com o mundo interno. Sonhos, fantasias, imaginação ativa, são formas de contato com ele e de contato com nossas verdades internas e profundas.
O contato com esse mundo interior é sempre uma viagem à beira da loucura, do irracional. Nosso mundo vira de ponta cabeça. Aquilo que achávamos que tinha valor na vida externa acaba perdendo o sentido e nos sentimos muito próximos de nossa animalidade e das nossas emoções indiferenciadas.
No oráculo de Delfos, então, vemos essas duas forças contraditórias convivendo juntas. Apolo é aquele que traz a ordem, simbolizando nosso chamado a atender ao Espírito da época. Apolo é sociável, agradável e belo.
Apolo o arqueiro infalível e deus da luz, o matador da serpente Píton – símbolo das forças do mundo subterrâneo e do caos irracional, mostra que para atendermos a necessidade de adaptação externa temos que dominar nossa animalidade através da disciplina e conhecimento, por isso Apolo é considerado o deus das penitências e purificações. Com isso perdemos o contato com os instintos e emoções. Corpo e alma padecem nesse processo de socialização e atendimento ao chamado da cultura e socialização.
Dioniso o deus da embriaguez e do descomedimento mostra por meio de sua representação, que representa o Espírito das Profundezas. Entrar em contato com sua natureza interior pode ser considerada um desmembramento que pode levar a loucura momentânea e a morte da personalidade consciente para o renascimento e renovação da atitude consciente.
Dioniso é a criança divina também, símbolo da juventude e renovação.
Nosso lado Apolíneo é o lado da razão, cultura e do raciocínio lógico. Que é belo e radiante, mas que – como no mito de Apolo – também é cruel e mata toda forma de manifestação de amor. Apolo foi o deus que amou e não foi correspondido. Todas as suas tentativas de se relacionar terminaram de forma trágica, o que mostra que a razão mata a emoção. O amor é irracional em sua manifestação, não tem lógica. Ele surge de uma necessidade interior e é o grande chamado para o encontro com a alma e o mundo interno.
Por outro lado, o Dionisíaco é nosso lado caótico e que apela para as emoções e instintos.
A tensão criada pela interação entre esses dois aspectos em nós gera a loucura divina. A tragédia nasce desse encontro, assim como a criatividade.
Estar a serviço desses dois espíritos antagônicos é a verdadeira essência da loucura divina.
A dicotomia estruturadora da psique humana, que ora é regida pelos impulsos racionais (apolíneos), ora pelos impulsos sexuais e instintivos (dionisíacos) gera movimento. A ordem que surge do caos e a implosão de uma ordem rígida mostra a impermanência e a verdade da vida humana.
Servir a apenas um desses espíritos gera unilateralidade que bloqueia o fluxo de energia psíquica e o movimento da psique.
Apolo planeja e executa, mas na rigidez implode e mata a vida e a libido. A busca da estabilidade em uma vida efêmera causa angustia existencial. Dioniso intoxica e gera caos, mas não da forma aos seus devaneios e sonhos. A instabilidade da vida o aniquila em vícios.
A união desses dois aspectos é o equilíbrio entre o sonhar e realizar. O caos e a ordem em equilíbrio transcendente, que se unem criando nova vida e inspiração visionária.
Texto: Hellen Reis Mourão
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